quinta-feira, 14 de julho de 2011

Claves mortis

Claves Mortis et Inferni

O livro do Apocalipse de São João, cujo nome traduzido do grego significa “revelação”, apresenta-nos esta palavra de consolação e esperança quanto à nossa vida futura: “Ao vê-lo, caí como morto aos seus pés. Ele, porém, colocou a mão direita sobre mim assegurando ‘Não temais! Eu sou o Primeiro e o Último, o Vivente, estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho as chaves da Morte e do Hades [habeo claves mortis et inferni]. Escreve, pois, o que viste: tanto as coisas presentes como as que deverão acontecer depois destas” (Ap 1,17-19). Com que palavras luminosas e comoventes Cristo alivia, como um bálsamo, as feridas de nossas tristezas!
O contexto da expressão joanina não pode ser desconsiderado, pois, “o encontro com Cristo glorificado é uma experiência tão forte que João cai no chão, como fizeram Paulo, Ezequiel e Daniel em circunstâncias semelhantes (1,17a; At 9,3-4; 22,6-7; Ez 1,28; 3,23; 43,3; 44,4; Dn 10,7). Ele ouve Cristo anunciar que é o primeiro e o último (1,17b), uma declaração da existência e do poder eterno pertencentes somente a Deus (Is 44,6; 48,12). Aqui portanto Cristo é apresentado como Deus, o Criador e Senhor absoluto da história. [...] O fato de Cristo ter conquistado a morte e emergido do Hades lhe conferiu as ‘chaves’, símbolo de que ele tem poder e autoridade para entrar nesses lugares. Para o cristão, a morte é serva de Cristo” (Comentário Bíblico Africano). Assim, nesse vislumbre da teologia da revelação do Apóstolo São João, encontramos uma profunda correspondência à literatura paulina no que concerne à convicção da ressurreição de Cristo. Ele, de fato, é o Senhor da vida e da morte. Foi Deus, o seu Pai bendito, que quis que ele assumisse as consequências de nossos pecados, a fim de que pelo sangue de sua cruz recebêssemos o penhor da vida divina. Desse modo, “são inúmeras e várias as expressões da Sagrada Escritura que nos podem consolar a todos. Basta-nos, porém, a esperança da ressurreição e termos os olhos fixos na glória de nosso Redentor. Pela fé já nos consideramos ressuscitados com ele, conforme diz o Apóstolo: se morremos com Cristo, cremos que também viveremos por ele (Rm 6,8)” (Das Cartas de São Bráulio de Saragoça, bispo).
O mistério sombrio da morte envolve de perto o drama doloroso de nossa humanidade. Choramos nossos entes queridos, experimentamos dentro do coração a dor da saudade, a certeza da ausência sofrida dos que se nos anteciparam na viagem sem retorno, mas não podemos nos entregar às lamúrias sem fim, pois o “Vivente”, diante do qual tudo vive, já venceu a morte com sua ressurreição. De fato, o comportamento cristão deve ser diferente do de quem vive sem fé nem esperança na vitória gloriosa de Cristo Ressuscitado. Portanto, “para o cristão, a morte não é o resultado de uma luta trágica que se deva afrontar com frieza e cinismo. A morte do cristão segue as pegadas da morte de Cristo: um cálice amargo, porque fruto do pecado, a beber até o fim, porque é a vontade do Pai, que nos espera de braços abertos do outro lado do limiar; morte que é uma vitória com aparência de derrota; morte que é essencialmente uma não-morte; vida, glória, ressurreição” (Missal Cotidiano). Daí que “ter as chaves da morte e do inferno” significa vencer as barreiras e resistências de todo tipo e dimensão, abrindo o horizonte do êxtase inaudito da verdadeira vida, da vida em plenitude, da vida que não se acaba nas incongruências inapeláveis de nossas limitações humanas, terrenas. Ou seja: “A morte do cristão não é um momento no fim do seu caminho terreno, um ponto isolado do resto da vida. A vida terrena é preparação para a do céu, nela estamos como criancinhas no seio materno: nossa vida na terra é um período de formação, de luta, de primeiras opções. Ao morrer, o homem se encontrará diante de tudo o que constituiu o objeto das suas aspirações mais profundas: encontrar-se-á diante de Cristo e será a opção definitiva, construída por todas as opções parciais desta terra” (Missal Cotidiano).
A literatura paulina é muito rica e confortante no sentido da nossa esperança cristã: “Irmãos, não quero que ignoreis o que se refere aos mortos, para não ficardes tristes como os outros que não têm esperança. Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também os que morrem em Jesus, Deus há de levá-los em sua companhia. Pois isto vos declaramos, segundo a palavra do Senhor: que os vivos, os que ainda estivermos aqui para a Vinda do Senhor, não passaremos à frente dos que morreram. [...] E assim, estaremos para sempre com o Senhor. Consolai-vos pois uns aos outros com estas palavras” (1Ts 4,13-18). A “Vinda” do Senhor é certa! Por isso somos insistentemente convidados e motivados à vigilância pelo Senhor que virá. Ele virá para nos levar consigo. Nos evangelhos, quantas vezes Cristo pede-nos que sejamos vigilantes porque não sabemos o dia nem a hora em que seremos levados por ele para o seu Reino eterno? (Mt 24,42-43; 25,13; Mc 13,33.35.37; Lc 21,36; Ef 6,18; Cl 4,2; 1Ts 5,6.10; Ap 16,15). Mas como é difícil perseverar constantemente e “vigiar” para ter a “força de escapar de tudo o que deve acontecer e ficar de pé diante do Filho do Homem”! (Lc 21,36).
Na verdade, mesmo que vivamos de maneira distraída e displicente os dias cinzentos sobre a terra, sem nos preocupar realmente com o que virá depois; mesmo que tentemos procrastinar o máximo possível aquela hora inesperada; mesmo que recorramos às academias de ginástica para melhorar o físico de nossa compleição, sem considerar o fato de que, ainda se “sarados”, poderemos ser chamados a qualquer momento; enfim, mesmo que nos valhamos de tantos outros recursos recreativos que nos conduzam ao olvido frenético e quase total da morte, ela está bem aí, do nosso lado, golpeando nossos amigos, vizinhos e parentes, até que nos atinja também a nós. E, então, “toda essa aparência de um palco ilusório desabará, e nós veremos a realidade como ela é”!. Porém, como será que nos apresentaremos diante de Deus, diante do “Filho do Homem”? O que teremos para oferecer-lhes na dinâmica concretamente sincera do amor a Deus e ao próximo? Portanto, sem nos deixar afligir pelo desespero de uma vida fútil e vazia, sem grandes gestos de amor para com Deus e o próximo, façamos nosso humilde exame de consciência, e, se for o caso, permitamo-nos rever com honestidade nosso comportamento diante dos apelos divinos, no sentido de melhor garantir o ingresso no céu com o passaporte do amor vivido na terra.
Na plenitude do amor de Cristo que vence a morte, o inferno e todas as potências do mal, está a certeza de que nele também somos vencedores, pois se com ele morremos, “temos fé que também viveremos com ele, sabendo que Cristo, uma vez ressuscitado dentre os mortos, já não morre, a morte já não tem domínio sobre ele” (Rm 6,8). Assim, viveremos com ele pelos séculos dos séculos sem fim. Amém!