sábado, 2 de julho de 2011

Dom Luciano Duarte

Dom Luciano Duarte: nem “hagiografia” nem “demonografia” 
Com redobrada atenção e interesse, li e reli o texto que apareceu no Jornal da cidade do dia 13 de abril, apresentado pelo professor Afonso Nascimento, intitulado “A hagiografia de Dom Luciano Duarte”. Segundo informação do Jornal, ele é professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe. Pessoalmente, não o conheço, mas sei quem é Dom Luciano Duarte, e, também, tive o privilégio de perlustrar a obra de Gizelda Morais, assim que ela foi publicada. O fato é que tudo o que diz respeito a Dom Luciano José Cabral Duarte interessa-me imensamente. Um título envolvendo o seu nome, sempre desperta curiosidade em não poucas pessoas, sobretudo, no trânsito livre da Imprensa de Aracaju, e, mais ainda, na importância democrática da liberdade de expressão em que vivemos. Assim, no brevíssimo bilhete que entreguei, pessoalmente, ao Sr. Jarbas Passarinho, em sua casa, no Lago Norte, em Brasília, no dia 11 de julho de 2008 – logo após o lançamento do “Relato Biográfico” – eu dizia do “fôlego prolixo que seria exigido para a absorvente perlustração dos dados aí contidos”. Referia-me ao “Relato Biográfico” do Arcebispo Emérito [não “ex-arcebispo”] de Aracaju, Dom Luciano José Cabral Duarte, lançado no dia 3 de julho daquele ano, na presença de tantas personalidades ilustres, autoridades civis e religiosas, amigos e admiradores que, ao longo de décadas, beberam da fonte inexaurível de sua “sabedoria acumulada”.
Quanto ao “Relato Biográfico”, trata-se do substrato, preciosíssimo, de testemunhos e depoimentos, imbricados, magistralmente, pela artimanha estilístico-literária de sua autora, na convergência histórico-temporal do brilhantismo de uma existência devotada ao proveito intelectual de inúmeros benfeitores do saber.
Apresentado ao pôr do sol da vida do homenageado, o “Relato Biográfico” é o reflexo de que a claridade de sua existência continuará incidindo seus raios sobre as gerações futuras, ainda por muito tempo. O sol nunca se apaga definitivamente. Pelo contrário, ele se esconde na sombra dos acontecimentos para despontar, fulgurantemente, no espaço em cuja direção a intensidade de seu brilho desconhece limites. O relato é o depoimento de pessoas que, ainda hoje, atravessam a encruzilhada de nossa vida, testemunhando o oportuno apoio recebido de Dom Luciano Duarte. Com efeito, a tradição cultural formativa de plêiades exímias não morre nas páginas adormecidas de um livro. Ela transcende-o, inelutavelmente. E o frescor de ventos, variavelmente literários, sopra as pétalas do espírito dialético, que se encanta e vibra – ou, não – com a magia da palavra, bem orientada, desferindo as flechas na riqueza inesgotável de seu descerrado conteúdo.
De uma página à outra, sem perder o valor estilístico e a cadência literária da elasticidade do pensamento, a autora faz transparecer, no trampolim das idéias, a imagem de um homem determinado e persistente, a fim de atingir todos os intentos e objetivos, de modo especial, na elevação própria da dignidade humana. Ela não apresenta apenas a resplandecência fácil de lisonjas intelectuais, mas, também, a deferência oportuna de pessoas humildes e simples que se tornaram espontâneas e à vontade diante de sua presença. Na verdade, o relato inteiro é um esforço meritório de resgatar, sob a luz do “mítico” Dom Luciano Duarte, a clarividência serena, acertada, de feitos e fatos que se desdobram e se desprendem, irrefreavelmente, dos galhos frondosos de sua intrínseca história. É a própria autora quem o reconhece, no limiar do último suspiro de seu imenso trabalho de pesquisa e estudo: “São fragmentos, peças com que tentamos compor o ‘puzzle’, o quebra-cabeça que é o mistério de uma existência”. Destarte, considerando que “um livro nunca está acabado”, certamente, a leitura e releitura da obra serão favoráveis à exigência da “revisão” necessária, aberta à possibilidade de uma próxima edição. Sem dúvida, este será um contributo valioso da presteza de leitores assíduos ao desafio produtivo da cultura das letras.
Que outros ventos soprem as páginas desse livro, levando a cabo, com maiores detalhes, a apreciação da “cultura construída durante anos na individualidade vulnerável” do homenageado, Dom Luciano José Cabral Duarte, Arcebispo Emérito de Aracaju. Na verdade, seria uma ótima colaboração, especialmente, ventilando a prospectiva oportunidade de ver, não uma “demonografia” sobre Dom Luciano Duarte, mas, a possibilidade lúcida, e não preconceitualmante limitada quanto à dialética do alcance de seu pensamento filosófico ou das penumbras não elucidadas, de modo exaustivo e suficiente, como é o caso da enigmática personalidade do Arcebispo Emérito de Aracaju. Por isso, imagino que há muitas pessoas se mordendo e querendo morder, com o fato de que Dom Luciano Duarte tenha tido o merecido reconhecimento por tudo o quanto ele fez pelo Estado de Sergipe, mormente, na área da Educação, isto é, através de uma dimensão um tanto, talvez, distante do que, na opinião de alguns, deveria ser sua exclusiva missão evangelizadora. Felizmente, Dom Luciano Duarte, com sua visão perspicaz e transcendente no que concerne às realidades humanas, sempre foi mais longe do que poderia sugerir nossa mediocridade fechada nos limites do próprio egoísmo em não perceber a necessidade do conjunto social, que não precisa, apenas, da pregação do Evangelho, mas, também, de oportunidades concretas de sobrevivência, gripando, inclusive, altos escalões da formação acadêmica. Foi o que Dom Luciano Duarte fez com muita gente.
Em círculos escuros e de vozes baixinhas, descobri que Dom Luciano Duarte tem muitos depreciadores – para não dizer “inimigos”, uma palavra que considero muito pesada para falar de seus não admiradores – quanto ao seu estilo de gerir as questões relacionadas à amplidão de suas percepções, como seu envolvimento com os militares na época da repressão no Brasil, uma página, entre tantas outras que não estão bem definidas no “Relato Biográfico”. Aliás, se alguns deles – “dos inimigos” – desejam pronunciar-se, façam-no o mais rápido possível, pois o tempo é fugidio! Penso que a voz de Gizelda Morais não deveria ser a última expressão do que podemos apreender do filósofo sorbônico, amigo de Jean Guitton, de quem foi aluno, e admirador de Henri Bérgson, um dos maiores pensadores do século passado, em sua opinião. Com efeito, se o desafio de sua vida na Igreja e na Política não foi muito agradável a muitas pessoas, não seria de se esperar que o testemunho de amigos que se manifestaram no “Relato Biográfico” de Gizelda Morais também o fosse! Claro que Dom Luciano Duarte não é um santo nem o relato de sua biografia deveria ser visto qual “hagiografia”, a ponto de ser levada ao Vaticano para a possibilidade de sua “beatificação” – a “beatificação” é para quem já morreu, o que não é caso de Dom Luciano Duarte – como sugere o autor do Artigo. Todavia, tenho certeza de que o Papa Bento XVI teria muita satisfação em recebê-lo. A gente é que fica com dor de cotovelo, mas, se alguém falava de Aracaju ao então Cardeal Joseph Ratzinger, o atual Papa Bento XVI, ele perguntava, imediatamente: “A Arquidiocese de Dom Luciano Duarte? Como ele está?”. Quanta gente Dom Luciano Duarte aborreceu no episcopado brasileiro e em tantos outros âmbitos da vida de uma sociedade indefinida, em cima do muro, em questões de vida ou de morte social, acadêmica, política, religiosa, ética, cultural? Sei que sou suspeito para dizer o que digo, porque também sou seu admirador. Todavia, não posso me calar, quando, de maneira sorrateira e dialeticamente falaciosa tentam denegrir sua imagem. Poucos, como ele, tiveram a audácia e a argumentação para dizer o que disse e se pronunciar como se pronunciou, em determinadas ocasiões, para o constrangimento de tantos de seu auditório. E isso não foi somente no episcopado brasileiro. Quem não se lembra de suas altercações? Ele sempre levou até as últimas consequências o risco da frase que ele mesmo nos ensinou: “Só merece ser levado a sério quem é capaz de sofrer pelas suas convicções!”. Todos sabemos – e ele nunca escondeu de ninguém, nem mesmo do episcopado brasileiro, o qual ele, muitas vezes, deixou-o furioso com seus discursos cortantes – que, mormente, quando clareavam os lampejos neuróticos da “rebeldia contra Roma”, ele tomava posições severas e corajosas contra os ditos ‘teólogos e bispos católicos’ que se julgavam donos do patrimônio da moral e da doutrina católica, quando, não, do próprio “depositum fidei”. Quanta presunção! Quem não leu muitos de seus artigos no “Estadão” e na “Folha de São Paulo”? E não era um problema isolado, isto é, apenas do Brasil ou da América Latina, que ferviam como “um barril de pólvora”. Naqueles anos turbulentos da situação delicada e tensa das décadas de 70 e 80, o famigerado e temido cardeal Ratzinger, hoje, o amável Papa Bento XVI, cuja eleição nada mais é do que uma ratificação patente e serena de que ele estava no caminho certo, remando contracorrente em meio ao turbilhão de críticas e censuras vindas, também, da parte daqueles que mais deveriam colaborar e ajudá-lo, como de alguns cardeais da Cúria Romana. Quem não se lembra que, também, o brasileiro Leonardo Boff foi convidado a “tomar um cafezinho” com o então Cardeal Ratzinger, que era o Prefeito da referida Congregação? Cito apenas um exemplo para soprar o pó do olvidamento de algumas memórias esquecidas.
A título de esclarecimento, na Igreja Católica Apostólica Romana, não existe “ex-arcebispo”, mas, “Arcebispo Emérito” – como é o caso de Dom Luciano Duarte. Esse é o termo eclesiástico correto. Conforme o Código de Direito Canônico, o título de “emérito” é conferido aos que perdem o “ofício, por idade ou por renúncia aceita” (Cân. 185). No caso de sua renúncia, em 1998, lembro-me de que um sacerdote comentou que ele disse: “Eu não estou me aposentando. Na Igreja ninguém se aposenta. Simplesmente, eu estou deixando de servir a Deus de um modo para servi-Lo de outro”. Foi, pois, assim, na simplicidade do recolhimento, que ele se despojou de tudo o que tinha feito pela Arquidiocese e pela Igreja no Brasil e na América Latina – não podemos nos esquecer de que, em 1972, ele foi eleito Presidente do Departamento de Ação Social do Conselho Episcopal Latino-Americano, o CELAM – deixando o espaço livre para o trabalho de seus sucessores. Mas, ao contrário do que diz o profeta Isaías, “ele não foi um cão mudo” (Is 56,10).
Hoje, talvez, no afã ou na azáfama em querer substituir ou olvidar a recordação de sua beneficência, podemos até faltar com o reconhecimento e a gratidão, mas não devemos permitir que, por investidas maléficas da arbitrariedade leviana de quem não fez, nem sequer, o mínimo possível do alcance de sua contribuição, em vários níveis de sua benemerência, desfiram contra ele mordidas inconsequentes de quem ataca um leão morto e, portanto, sem a prontidão necessária de seus reflexos para a autodefesa, ainda se, como diz o adágio latino, “leonem mortuum etiam catuli morsicant”, ou seja: “em leão morto, até os cachorrinhos dão mordidas”.
É verdade que outros aspectos da vida de Dom Luciano Duarte deveriam ser estudados e abordados com lucidez e competência por aqueles que se interessam pelo assunto, como, por exemplo, a aproximação do pensamento de Tomás de Aquino com Hume, inclusive, fundamentando melhor a “forçação de barra” com que seu trabalho intelectual – uma tese doutoral realizada há mais de meio século e, evidentemente, com recursos metodológicos e de pesquisas diferentes dos nossos – foi apelidado. Contudo, tinha de ser uma análise interpretativa dos fatos à luz dos fatos e de todas as implicações que eles carregam consigo – e não fundamentada na predisposição envenenada pela perversa intenção de querer conspurcar a imagem alheia de quem quer que seja. Infelizmente, a elite intelectual de nosso país é preconceituosa. Basta saber o tipo de discurso que alguns professores de história e de sociologia, entre outros, adotam nas salas de aula das Universidades brasileiras contra a Igreja Católica. Assim, com o tom de deboche e depreciação por uma das Instituições mais duradouras no tempo, eles vão chocando filhotes de herege para as gerações futuras. Alegra-me o fato de que todos os profetas nefastos do fim do Cristianismo ou da Igreja Católica estão morrendo todos, um por um, enquanto ela está mais jovem do que nunca, porquanto alimentada pela seiva divina, que jamais será contaminada pela indisposição hipócrita de seus inimigos. Se a Igreja está tão errada assim, como eles dizem de boca cheia, por que eles não se enfileiram em seu interior para testemunhar sua coerência impoluta, a fim de convertê-la? Durante quatro anos, eu morei na Europa e sempre assisti a debates em canais televisos abertos sobre temas polêmicos e controversos, com interlocutores imparciais, capazes de ver os “prós e os contras”, a partir da interpretação dos fatos em si mesmos, mas sem a intenção perversa de ferir alguém, atribuindo-lhe as culpas pelos atropelos negativos dos acontecimentos. Isso, no Brasil, eu nunca vi. Há, inclusive, quem pense e diga que todos os problemas do mundo, sobretudo, os relacionados à pobreza e à miséria, são culpa da Igreja, mesmo aonde o Cristianismo nunca chegou nem a Igreja Católica existe. Mas, tudo é visto dentro do preconceito que se criou ao longo da história por conta dos “pecados” da própria missão evangelizadora da Igreja.
Na dinâmica do “pecado” e da “graça”, também existente em proporções menores no caráter e na formação das pessoas, não devemos permitir que o lado pior pese mais que o melhor, embora, também não devamos dispensar-nos à oportunidade tempestiva da autocrítica.