domingo, 31 de julho de 2011

Evangelium Pacis

Evangelium Pacis 



Ao lado da palavra “reconciliação” está o vocábulo “paz”, que assume características teológicas dentro do universo do projeto que Deus instaurou por meio de seu Filho para redimir o homem. Cristo é a nossa paz. O Novo Testamento está pleno de citações sobre a paz que somente Cristo pode oferecer ao mundo, a paz que o mundo não pode dar a ninguém. Nossa paz é uma pessoa: Jesus Cristo. Se a “boa nova” da “reconciliação” que Deus estabeleceu com o homem em Cristo, é um autêntico princípio de paz, da paz verdadeira, então, essa “boa nova” é também manifestada pelo “evangelho da paz”, pois “tal é a palavra que ele enviou aos Israelitas, dando-lhes a boa nova da paz [verbum misit filiis Israhel adnuntians pacem per Iesum Christum hic est omnium Dominus] por Jesus Cristo que é o Senhor de todos” (At 10,36). Cristo é o Evangelho da paz [evangelium pacis]
Segundo N. M. Loss, o tema bíblico da paz é tão rico quanto complexo, enquanto a terminologia que a exprime é pobre, mesmo se cobrindo uma área semântica muito vasta e diferenciada. Assim, o mesmo nome hebraico “shalom” assume nos textos uma vasta gama de nuanças e matizes, sobretudo, quanto aos aspectos religiosos correspondentes aos nomes da literatura clássica como na trilogia shalom, eirēnē e pax. Relacionado à “reconciliação”, interessa-nos, de modo especial, o significado do termo “paz” dentro do horizonte cristológico do Novo Testamento, mesmo sem desmerecer o rico processo linguístico que atravessa todo o Antigo Testamente, oferecendo atribuições importantes para entendermos a paz na esfera individual, política, social, escatológica ou messiânica, como sugere o referido autor.
Quanto à concepção de paz – eirēnē – no NT, ainda segundo o autor acima referido, poderíamos sintetizá-la afirmando que sua consideração mais comum e fundamental é aquela que conecta o termo com o dom global, definitivo e supremo feito por Deus ao homem por meio de Cristo. Consequentemente, tanto Deus quanto Cristo, de alguma maneira, são definidos com expressões do tipo: “o Deus da paz” (Rm 15,33; Hb 13,20) e o “Senhor da paz” (2Ts 3,14). De modo mais claro ainda, dir-se-á de Cristo, com alusão a Mq 5,4: “Ele é nossa paz!” (Ef 2,14); e no mesmo contexto, chamá-lo-á “aquele que opera [ou realiza] a paz”, asseverando que ele “anunciou paz” (Ef 2,15.17). Embora os textos citados sejam uma pequena coletânea, eles mostram com suficiência o caráter pleno da paz, segundo o perfil essencial traçado em todo o NT. Ou seja, que a paz não se coloca simplesmente ao nível político ou exterior, de maneira que o próprio Cristo assegura claramente que a “sua paz”, proposta por ele, não exime ninguém das tribulações encontradas no mundo. De fato, trata-se da paz que será encontrada somente nele: “Eu vos disse tais coisas para terdes paz em mim. No mundo tereis tribulações, mas tende coragem, eu venci o mundo!” (Jo 16,33). Com efeito, refere-se, exatamente, à paz que contem em si a perfeita certeza da salvação que não se pode ter “nesse mundo”, mas que atinge a própria segurança pela garantia apresentada por Deus.
Em face do dom de Cristo, oferecido a todos, a paz também assume uma dimensão relacionada à vida e contraposta à morte. Em Romanos 8,6, lemos: “De fato, o desejo da carne é a morte, ao passo que o desejo do espírito é a vida e a paz [nam prudentia carnis mors prudentia autem Spiritus vita et pax], uma vez que o desejo da carne é inimigo de Deus: pois ele não se submete à lei de Deus, e nem o pode, pois os que estão na carne não podem agradar a Deus”. Portanto, por meio dessa paz, reflui no homem cristão a verdadeira vida que brota do Espírito de Deus. Destarte, seguindo a mesma linha de raciocínio, há de ler-se a menção sobre o “Deus da paz”, repetida na conclusão de várias cartas do NT, como, por exemplo, em Romanos 16,20, cuja leitura é muito sugestiva e oportuna: “Pois o Deus da paz não tardará em esmagar Satanás debaixo de vossos pés. Que a graça de nosso Senhor Jesus Cristo esteja convosco!”. Essa é a paz que compreende “todo bem” (Hb 13,20-21) e “todos os bens” (1Ts 5,23). Com certeza, a paz que Deus oferece-nos em Cristo ultrapassa todos os anseios de nossos desejos de quietude verdadeira, de plenitude verdadeira, porque, mesmo se materialmente abastecidos na ganância da insaciabilidade do coração, nada poderá substituir a paz de Deus. Olhando o mundo caótico da vida moderna, na voracidade inquietante da violência patrocinada pelos projetos nefastos da destruição da dignidade humana, a paz não será possível, sem Deus. Enquanto o terreno impermeável do nosso coração viver em conflito interior, em guerra, cada vez mais distante e afastado de Deus, não experimentaremos a paz que buscamos. Na sociedade, não basta a aparente “tranquilitas ordinis” – a “tranquilidade da ordem” – para vivermos a paz. Na verdade, sob o terreno social da enganadora “tranquilitas ordinis”, a ditadura da guerra pode solapar, escondidamente, o tecido da fraternidade. Por isso que a paz de Deus estende-se sobre o sonho da reconciliação entre todos.
Voltando ao pensamento do nosso autor, Loss, a paz com Deus deve favorecer a paz com os irmãos. Assim, ele considera que, com a estrutura e a dinâmica da paz, como vemos no NT, está estreitamente ligado outro elemento essencial, que, de um ponto de vista formal e literário, vem ligado a outros termos: é o fato de que o bem da paz apresenta-se ampliando por Deus, pela obra de Cristo, destruindo, sobretudo, o obstáculo do pecado e tudo quando a ele se liga. Nesse contexto, o autor apresenta uma breve reflexão sobre a “justificação”, a “reconciliação” e a “obra da paz”. Vejamo-la brevemente.
Em primeiro lugar, referindo-se à justificação, o autor começa acenando para o fato de que, pelo pecado, os homens se tornaram “desobedientes” a Deus e “rebeldes” contra ele (Rm 11,30; Ef 2,2; Cl 3,6), e, por conseguinte, acabaram transformando-se em objetos de sua “ira” (Rm 1,18ss) e, também, inimigos de Deus (Rm 5,10; Cl 11,21). Portanto, essa é a sua condição geral, tanto para pagãos quanto para judeus (Rm 1,18-32; 2,1-3,20). Desse modo, não há outra caminho de saída para a humanidade senão por meio da comunicação da “nova vida” – a “nova justiça” – operada por Deus em Cristo, e à qual somente se pode ter acesso por meio da fé (Rm 3,21-26). Logo, a “justificação” coloca o homem em estado de “paz com Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, por quem tivemos acesso, pela fé, a esta graça, na qual estamos firmes e nos gloriamos na esperança da glória de Deus”. Na dinâmica da graça divina recebida por Cristo, sua condição não é estática, mas progressiva no sentido da doação de vida, da fé à esperança, à caridade, cuja fonte é o Espírito Santo derramando nos corações (Rm 5,5). Em segundo lugar, aludindo à reconciliação, a obra deletéria do pecado não altera apenas a relação com Deus, mas, investe de igual maneira sobre as relações recíprocas entre os homens (Rm 1,26-32), a tal ponto que até o quanto Deus realizou para iniciar o processo de salvação em Israel, isto é, a sua lei, pela força corruptora do pecado, não apenas se torna causa de morte para quem vive sob a lei (Rm 7,13), mas também para quem está fora pela lei enquanto barreira divisória relacionada a Israel e causa de “inimizade” (Ef 2,14-18). O efeito da obra de Cristo cancela também a barreira da lei, tendo como objeto a “reconciliação” dos homens com Deus e entre eles mesmos, o que significa a “paz”: paz com Deus por meio da “justificação” (Rm 5,1), e paz global com Deus e com os homens na universal “reconciliação” (Rm 5,10; 2Cor 5,18; Ef 2,16; Cl 1,20-22). Enfim, no terceiro ponto da reflexão, o autor destaca a “obra da paz”, cuja realização assume uma conduta interna, interior, na vida e no comportamento pessoal do cristão, conforme a vontade de querer viver em paz com os outros. Todavia, essa atitude não é suficiente, pois, o cristão também deve “promover a paz”, com base na orientação de São Tiago (3,18). Esse aspecto já foi realizado substancialmente pela obra da reconciliação universal de Cristo (Cl 1,19-20; Ef 2,14). Para concluir, o autor lembra a bem-aventurança de São Mateus que enfatiza os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus (Mt 5,9). Nesse versículo, é antecipado, de alguma maneira, o conteúdo da exortação ao amor total e à total perfeição nele, inclusive, evidenciando o amor aos inimigos.
Enfim, construtores e operadores da paz, que começa na realização plena da reconciliação de Deus com todos em Cristo, também nós devemos dar nossa parcela de colaboração, a fim de que, realmente, o mundo seja mais pacífico e digno dos verdadeiros filhos de Deus. E o primeiro esforço na direção da pacificidade entre nós deve ser feito dentro de nossa própria casa.