terça-feira, 26 de julho de 2011

No dia dos namorados...

Deus Enamorado, Cristo Apaixonado 



No dia dos namorados, gostaria de trazer a lume uma reflexão sobre o relacionamento de Deus enamorado de sua obra-prima, o homem, de modo especial no que concerne seu amor pelo povo de Israel, e consequentemente, pela humanidade inteira. Em qualquer relacionamento humano propriamente dito, há muitas atitudes que revelam desconfiança, desamor, desafeto, decepção, frustração e, assim, por diante. Todavia, nem sempre os recursos da psicologia humana favorecem o amadurecimento da pessoa em circunstâncias tão desastrosas no confronto com o outro.
Por sua vez, a história de Israel demonstra, de maneira muito clara, que Deus, sempre enamorado de seu povo, nunca se cansou de amar por conta das conjunturas de infidelidade do povo. Nunca, comportamentos desse tipo contrariaram a essência do amor divino, porque ele é gratuito, generoso e desinteresseiro. Em Deus, o amor mostra-se invencível e impossibilitado de ser quebrado, rompido, partido, enfim, traído. Ou seja, Deus ama de modo diferente dos homens. No entanto, mesmo sem se adequar às deficiências do amor humano, sem se permitir contaminar pelas suas fraquezas e desencantos, a perseverança do amor divino poderia indicar caminhos de superação recíproca no desgaste do quotidiano. O fato é que somente pode amar verdadeiramente quem é capaz de respeitar a individualidade do outro, mormente, no que concerne o ser da pessoa na sua inteireza, na sua incomunicabilidade, na singularidade livre com que os trejeitos individuais solicitam ou reivindicam sua própria autonomia. Nesse contexto da singularidade da pessoa, nem exploração nem abuso do outro, mas cumplicidade relacional; nem mentira nem desconfiança, mas simplicidade confidencial; nem cara feia nem mau-humor, mas simpatia e boa vontade; nem traição nem falsidade, mas confiança e verdade. Para irmos mais além, se Deus não nos amasse como nós somos, não seríamos merecedores de seu amor. Contudo, nem por isso a generosidade de seu amor dispensa a superação dos defeitos do amado, e, justamente, por isso, o perdão coincide com o desejo de ultrapassar as barreiras que ferem a autêntica reciprocidade.
Por que será que nos relacionamentos humanos há tão pouca gratuidade e, menos ainda, espírito de sacrifício? Até onde, realmente, as intenções para com a pessoa amada são puras e sinceras? Mais ainda: como vencer os incômodos imprevisíveis do fastio amoroso que deteriora o compromisso sadio com a cara-metade? Que valor tem a perenidade do amor circunstancial do “ficar” ou do tempo do “namorito”, para usar a gíria moderna, isto é, de um namorado, cuja presença assemelha-se ao de um marido? Como escrevi há algum tempo, a “amizade não se negocia. Não como no dia dos namorados, em que muitos vão às lojas comprar presentes de declaração de amor, fidelidade, compromisso com a pessoa amada. Tudo fruto da comercialização que se pode fazer com a troca de presentes, entre trejeitos de manifestação amorosa e desconfiança embaraçosa da suspeita de infidelidade. Até onde se pode perceber a sinceridade de amores passageiros e ameaçados pela força do hábito, que gasta as boas intenções do verdadeiro querer bem? Como traduzir, na brevidade de segundos efêmeros, o significado profundo de um olhar entre dois amores? Pode a densidade deste amor se concentrar na comemoração de um dia? Hoje, festa, emoção e entrega, e amanhã, quem sabe? Na insegurança de um relacionamento estável, e que ‘seja eterno enquanto dure’, pode-se tudo apostar na perenidade inconsistente de fantasias modernas? No terreno movediço de relacionamentos de amizades, de namoros e de amigos, o que conta, realmente, na superação de suas imperfeições e limites?” E o raciocínio desdobrava-se assim: “Se o olhar trai o gesto, e o gesto não expressa o sentido do olhar, cria-se um clima de suspeita que dilui o sentimento do outro no rio da ilusão. Mas, namoro também é feito de ilusão, de incerteza, de desafio em acreditar na verdade do outro. Verdade que me desfaz de mim mesmo para ser um no outro. Ou seja, trata-se da cumplicidade inerente à peleja amorosa que impõe riscos, vontade de equilíbrio, apoio seguro no árbitro do destino. [No entanto], existe um amor sublime, superior a todos os outros amores. Esse é um amor que faz resplandecer, no vitral das vicissitudes volúveis do passadouro do tempo, a finitude de amores rasteiros de duração limitada”. Com certeza, o “amor sublime” acima referido é o próprio amor de Deus, reflexo perfeito das incongruências de todas as frustradas experiências humanas.
Quem ama não mata, mas se permite morrer para defender a vida do amado. Evidentemente, nenhum outro testemunho é mais eloquente do que o de Cristo, que dá a vida pelos seus amigos. Por isso que Cristo é apaixonado pela sua Igreja. Em Cristo, a “paixão” não se trata de uma disposição afetiva vazia e condicionada pelos agrados momentâneos de namoricos falsos nem de galanteios superficiais e feitos por divertimento. Dizem que a “paixão” – talvez, vista como uma doença – é passageira, e voa com os ventos desiludidos e desencantados das frustrações com o amado, depois de fazer sofrer, e sofrer muito. Quantos de meus leitores não teriam uma experiência para contar nesse sentido? Mas, dizem também que o “amor” é duradouro, isto é, mais permanente que a “paixão”. Claro que são concepções rasteiramente humanas, e, portanto, não coincidem com os sentimentos do coração de Cristo. São Paulo apresenta-nos uma palavra esclarecedora e rica quanto à incondicionalidade do amor de Cristo por sua Igreja, através da entrega total, radical, sem o mínimo possível de reservas pessoais e egoístas como acontece na manifestação inconstante e, às vezes, até leviana, de nossos amores. Eis o pensamento de São Paulo: “E vós, maridos, amai vossas mulheres, como Cristo amou a sua Igreja e se entregou por ela, a fim de purificá-la com o banho da água e santificá-la pela Palavra, para apresentar a si mesmo a Igreja, gloriosa, sem mancha nem ruga, ou coisa semelhante, mas santa e irrepreensível. [...] Quem ama a sua mulher ama-se a si mesmo, pois ninguém jamais quer mal à sua própria carne, antes alimenta-a e dela cuida, como também faz Cristo com a Igreja, porque somos membros do seu corpo. [...] É grande este mistério: refiro-me á relação entre Cristo e sua Igreja” (Ef 5,25-32). Que belo paralelismo, entender a história do amor de Deus pela humanidade e de Cristo pela Igreja, constituída de todo o povo de Deus, à luz do amor esponsal! O discurso merece aprofundamento, mas, vamos limitar-nos, aqui, apenas, ao essencial à nossa imediata compreensão.
Segundo o Antigo Testamento, foi somente por meio da literatura profética de Oséias que, com base em sua vida pessoal, seu casamento se transformou em valor simbólico da relação de Deus com Israel. Assim afirma uma nota da Bíblia de Jerusalém sobre o assunto: “Oséias, contudo, é o primeiro a representar sob a imagem da união conjugal as relações de Iahweh com o seu povo desde a aliança do Sinai, e a qualificar a traição idolátrica de Israel, não apenas de prostituição, mas de adultério. Depois dele o tema será retomado pelos profetas (Is 1,12; Jr 2,2: 3,1; 3,6-12). Ezequiel desenvolveu o tema em duas grandes alegorias (caps. 16 e 23). O Dêutero-Isaías apresentará a restauração de Israel com uma reconciliação com uma esposa infiel (Is 50,1; 54,6-7, cf. Is 62,4-5). É necessário, também, ver as relações de Iahweh e de Israel expressas com imagens nupciais do Cântico dos cânticos e do Sl 45. Finalmente, no NT, Jesus representando a era messiânica como núpcias (Mt 22,1-14; 25,1-13), e sobretudo revelando-se como o esposo (Mt 9,15, cf. Jo 3,29), mostra que a aliança nupcial entre Iahweh e o seu povo realiza-se plenamente em sua pessoa. São Paulo utilizará igualmente esse tema (2Cor 11,2; Ef 5,25-33; cf. 1Cor 6,15-17), que será finalmente retomado pelo Apocalipse 21,3. – Os caps. 1-3 formam, no livro de Oseías, uma unidade claramente definida”.
Aprofundando os textos bíblicos sobreditos, será que não teríamos nada a aprender, a fim de melhorar nossos relacionamentos, não apenas com a pessoa amada, mas, também, e com maior intensidade e verdade, com todas as pessoas ao nosso derredor? Deixo, pois, a indicação.