sexta-feira, 1 de julho de 2011

A última flor do Lácio

A última flor do Lácio [mais] inculta e [menos] bela

É uma pena que, no momento, o MEC se responsabilize por distribuir livros de língua portuguesa, ferindo a preciosidade de sua natureza gramatical, conforme a estudamos com tanto empenho e afinco. É uma pena que os cultores de uma civilização, que se transmite pela perfeição da linguagem, pensem-na como uma forma de discriminação e vilipêndio, quando, ao ser pronunciada de modo contrário às suas regras, não seja digna de correção. A prosódia sofre o malogro dos dementes. Claro que há uma diferença entre quem foi à escola e teve a oportunidade de estudar e se aprofundar na arte da pronúncia correta e a de quem nunca teve chance de descobrir a lógica dos enredos dramáticos da costura solene da disposição das palavras no conteúdo de um texto, mesmo se coloquial.
Conversando com pessoas simples e humildes – o que fazemos todos os dias – também detentoras da cultura que lhe foi proporcionada, dentro dos limites do acesso à escolaridade ou não, evidentemente, não vamos exigir um português polido e transparente, erudito, ou, até mesmo conforme as regras estabelecidas pelos gramáticos para favorecer o alcance harmônico do discurso. Mas, daí a patrocinar a burrice estudantil ao nível da baixeza minimalista da mediocridade, é outra coisa. Ainda bem que há setores universitários que não se deixarão levar pela fossilização imposta do conceito digno do bom português, pelo menos, a fim de que seu corpo discente não se prejudique no futuro, por confundir a elegância plástica do “bem falado” com o prognóstico da “boa falácia”. Na verdade, se a situação do português desprendido da boca e do lápis dos estudantes já não é tão boa assim – mesmo em conjunturas universitárias, e, portanto, no âmbito do Ensino Superior – o que poderíamos dizer, ou esperar, se a cancela da “bestificação social”, como afirmou Alexandre Garcia, for escancarada à “preguicite” aguda de nossos acadêmicos? Será que o conhecimento chega à inteligência por “infusão”? Sim, porque há alguns estudantes que não são brilhantes, mas, esforçam-se e conseguem atingir certo nível de erudição, cuja tendência é o progresso em direção à plenitude de seu patrimônio intelectivo. Infelizmente, não podemos “infunicar” a deficiência de anos a fio na superficialidade do “empurrar com a barriga”, de modo a favorecer a incompetência e a inabilidade linguística dos profissionais do porvir, considerando que a maturidade será produzida no chão sáfaro da burrice da acomodação à conveniência da lei do caminho mais fácil, que, em síntese, é a lei da preguiça. Ninguém aprende nada sem muito estudo e fadiga. Assim, a graça de estado do estudante deve proporcionar a busca do aperfeiçoamento de suas qualidades, diante do que lhe é exigido nos meandros de sua formação.
É difícil de entender ou aceitar, mas a sociedade brasileira, contaminada pelas circunstâncias mundiais de prevaricação e miopia, quanto ao sentido do bem moral e metafísico da leveza da verdade das coisas, tem institucionalizado a política anárquica do “é proibido proibir”, em todas as dimensões humanas dos valores sagrados de sua alta dignidade e prerrogativas de “homo sapiens”. Longe da insinuação coerente dos atributos mais inerentes à nossa humanidade, estamos criando o “homo conveniens”, contanto que cada um dê vazão às quebras de sua falta de brio, senso de decência e decoro na legitimação da autobestificação. E muitos vão por esse caminho, porque mais cômodo, menos sofrido e mais politicamente correto. No entanto, esquecemo-nos de que “cada homem tem o seu preço”, como, tantas vezes, lembrou-me um amigo que, também, já pagou o seu preço com as arbitrariedades, nem sempre conscientes, de suas escolhas. O problema é que, com frequência, caminhamos tanto nos trilhos errados de nossa falsa liberdade que, quando nos damos conta, não temos mais tempo de voltar atrás. De fato, o arrependimento é insuficiente para refazer o percurso torto de nossas decisões insistentes e teimosas. Há estragos vitais de nossa existência que não podem ser, jamais, reparados. A estrada curta da negligência intelectual alarga-se nos tropeços incautos do comodismo que nos precipita, paulatinamente, na perdição sinuosa dos conceitos. O que vale para formação bem estruturada de uma personalidade forte, que não se sedimenta do dia para a noite, vale também para a aquisição dos benefícios do saber.
Há pessoas que passaram a vida inteira na esterilidade de sua própria apreciação, conformadas com a mesmice burra de sua presunção, e não deram um passo adiante na solidificação de sua personalidade nem da construção adequada de suas pretensões. Viveram como folhas secas levadas pelo vento instantâneo do “tanto faz como tanto fez”. Daqui a pouco, vão considerar que tanto faz dizer “masculação” quanto “musculação”; “olhos embaçados”, quanto “olhos embalsamados; “colesterol” quanto “cloresterol”, e assim vai descendo, ladeira abaixo, a verborréia delinquente da desintegração do saber. Mentalidades assim, estagnadas na infantilidade tímida do conhecimento, tanto assustam quanto preocupam. Então, como poderia uma nação melhorar seu coeficiente de educação aceitando o errado como se fosse o certo? A mentira como se fosse a verdade? O falso como se fosse o verdadeiro? As trevas como se fossem a luz? Enfim, a demência como se fosse a lucidez? A ignorância não se nivela por baixo nem pela máxima expressão do minimalismo. Como diria Cantù, um escritor italiano do século XIX, o ignorante não é apenas um lastro, mas um perigo na embarcação social, ou, para citar Goethe, nada é mais terrível do que uma ignorância ativa. Pior ainda, a ignorância ativada e homologada pelo Estado, que deveria tutelar e salvaguardar a riqueza hereditária mais preciosa de um povo, que é a sua língua.
Pobre poema de Olavo Bilac, que eleva, com estilo, elegância e garbosidade, a riqueza imperiosa da “última flor do Lácio, inculta e bela”, isto é, a língua portuguesa, esse derradeiro rebento da árvore neolatina, com que temos a honra solene de nos comunicar!. Agora, sim, “os cascalhos da bruta mina” serão velados pelo desinteresse de quem deveria aperfeiçoar, sempre mais, a “língua que sua boca tem a honra [e o mérito] de falar”. Já perdemos tanto com a estúpida iniciativa de, por longos anos, tirar o latim do ensino das escolas, que também querem sacrificar o português, fomentando a sede de domínio que o Estado possui em não permitir que as comportas da inteligência de seus patriotas sejam abertas o suficiente, a ponto de contradizê-lo no azedume irrefreável de sua tirania. Se o latinista e primoroso romancista francês, Charles Péguy, disse tão poeticamente bem: “O professor que, pela primeira vez, abre a gramática na declinação de rosa, rosae, não sabe sobre que canteiro de flores abre a alma do jovem”, o que diríamos da pobre e maltratada língua portuguesa? Se o professor não incentiva o aluno na conquista permanente do encanto pelo “canteiro de flores” da própria língua mater, que tipo de perfume será exalado de seus conhecimentos?
O investimento deve ser a longo prazo, mas, como diz um adágio russo, por mais longa que seja a caminhada, sempre se inicia pelos primeiros passos. Ninguém vai aprender a gramática num piscar de olhos. Então, coragem aos estudantes, aos professores e aos curiosos da linguística, e... Mãos à obra. Com certeza, terá maior êxito quem não se deixar levar pela minoria que julga o saber apenas uma questão de estilo, do estilo da mediocridade que não leva ninguém a lugar nenhum. Somente o saber qualificado, segundo as exigências da pesquisa e do labor intelectual, poderá abrir as portas do profissionalismo à superação da parvoíce insana dos dementes.