terça-feira, 12 de julho de 2011

A morte aceita qualquer desculpa...

A morte aceita qualquer desculpa

Se há um tema que me interessa, particularmente, é o tema da morte, tanto que escrevi o “alfabeto da morte”, que, em breve, quem sabe (?), colocá-lo-ei, explicado, à apreciação do meu leitor. É verdade que temos dificuldades para aceitar que nossa vida terá um fim sobre a face da terra, que, como o sol nasce e se levanta no horizonte da existência e, depois, volta a desaparecer, chegará o dia em que teremos sumido do meio de nossos amigos, de nossos irmãos, dos nossos [entes] vivos queridos. E para que isso aconteça, para que essa passagem seja efetuada, a morte aceita qualquer desculpa que seja a possibilidade de sua atuação, de sua satisfação insaciável, realizando, assim, o sonho de estender o seu manto tenebroso, obscuro e surpreendente, sobre suas vítimas distraídas, ou não. O importante é que ela tenha o seu caminho aberto, desimpedido.
As desculpas que a morte aceita podem ser as mais banais possíveis: um cheiro de cocaína ou maconha; um gole a mais de álcool; uma caminhada mais longa, que favoreça uma ferida no pé; um choque térmico; um prego no calcanhar da imprudência; uma rápida volta louca no trânsito; uma batida de carro; uma queda inesperada; um tropeço seguido da cabeça quebrada; uma doença incurável; um diagnóstico errado, que acelera o desequilíbrio psicológico do indivíduo que se torna esquizofrênico e alucinado; um engasgo irreversível; uma explosão violenta; uma bala perdida, encontrando alguém; uma ferida supurante; um susto assombroso; um dente extraído; um corte profundo ou superficial... Enfim, a lista de suas possibilidades seria interminável se tivéssemos tempo de continuar com a sangria vocabular. O fato é que, mais cedo ou mais tarde, ela – a morte – atingir-nos-á. Portanto, sendo que somente os vivos podem falar da morte, é conveniente considerar que o viver é tão misterioso quanto o morrer.
Entre um nível e outro da nossa existência na terra e além túmulo, há um instante tênue de separação que deve ser considerado em cada ato, consciente ou não, do fluir inexorável da vida, que leva consigo a preciosidade do nosso ser. A morte – como alguns políticos – não conhece pobreza, idade, riqueza, beleza, amizade, prosperidade, feiúra, aleijão, demência, finura, cordialidade, etiqueta, corrupção, honestidade, sinceridade nem falsidade, ou seja, todos esses sentimentos e caracteres, bons e ruins, que evidenciam o fingimento da realidade do ser humano, sua efemeridade e sua mentira, de modo que, nada poderá conter a fúria insana de seus desejos de realização. Portanto, na contramão da involuntariedade, fugir dela é correr ao encontro de seu abraço frio, congelável. E, nesse sentido, o tempo é implacável e, terrivelmente, cruel. Não podemos controlar ou condicionar a velocidade da ampulheta da existência. Uma vez acabada a duração que nos é permitida, nada mais poderá ser feito. Seu efeito é irreversível, irrestringível. Que fazer, então, diante do azedume impiedoso da foice mortífera? Ter paciência, humildade e resignação, a fim de esperar, sem ânsia, o limiar próximo de uma nova era, de uma iminente e luminosa estação da vida na plenitude da eternidade. Contudo, para isso, precisamos viver bem, e com intensidade, o “presente precioso”, o momento fugidio do “agora” que já é um “antes’ na pressão do “depois”, que nos confia um “mais tarde” até o derradeiro instante do trepidar do existir.
Somente vivendo bem o “agora” é que poderemos enfrentar bem, com inquieta suavidade, o “depois”, na certeza convicta da bem-aventurança do “mais tarde”. Daí a necessidade da colheita frutuosa da presença dos amigos, da amizade, dos benefícios da saúde, da companhia das boas intenções, da esperança... Seria uma espécie de “aproveitar a vida”, sem a conotação de querer e poder fazer tudo o que parece nos convir, mas, que não faz bem ao corpo, muito menos, à alma, pois, como afirmou Santo Agostinho, a alma só se alimenta daquilo que lhe dá alegria. E, com certeza, o fruto dessa alegria, é tudo aquilo que plantamos de bom e de bem durante os dias de nossa existência, de modo a podermos colher, com serenidade e paz de espírito, a maturação enriquecedora da bondade resplandecente no pôr do sol do fim de todos os nossos atos, resumidos no extremo ato do morrer.
Na verdade, apenas vivendo bem cada gota do orvalho que escoa na duração de nossa vida, poderemos subsistir bem ao último gesto do viver na plenitude decorrente do morrer.