segunda-feira, 4 de julho de 2011

Padres que incomodam

Padres que Incomodam

Embora o título acima seja acintoso e provocativo, não quero, aqui, falar mal dos padres que incomodam, mesmo que alguns incomodem, e incomodem muito. É tão bom falar da vida alheia, que imagino que muitos leitores meus ficaram curiosos. Vai dizer que não? A verdade é que os padres sempre se tornam manchetes de jornais, sobretudo, se estiverem envolvidos em algum escândalo público, ou se também ficarem famosos, arrastando fanáticos e desvairados admiradores atrás de si. No entanto, uma massa anônima de sacerdotes vive, com heroísmo e discrição, seu ministério sacerdotal no meio das comunidades para as quais foram enviados. De fato, é ali, na normalidade do quotidiano, longe dos holofotes e aplausos, que eles tentam levar adiante a sua espiritualidade sacerdotal de profunda inspiração evangélica. Sim, para quem pensa que os sacerdotes não possuem uma espiritualidade específica, eu lhe digo que seu modo de vivência consecratória encontra sua fundamentação no evangelho de Cristo Jesus, o Bom Pastor, que dá a vida pelas suas ovelhas, o que, de igual modo, devem fazer – e fazem – os padres, mesmo se dentro dos limites de suas fragilidades e possibilidades reais de generosa doação.
No frenesi do dia a dia e na dinâmica própria da vida, vez por outra, é preciso parar para refletir, meditar e rever como retomar o entusiasmo e a alegria do serviço prestado aos irmãos na vida comunitária. Daí a necessidade do conhecido “retiro espiritual” que, na vida dos sacerdotes de Cristo, deve ser como um oásis de graça e de bênçãos por meio do qual o espírito se embebe de renovado ardor e maior disposição para prosseguir o caminho pelos trilhos do ideal vocacional. E é justamente isso que os padres da Arquidiocese de Aracaju estão fazendo durante essa semana em Salgado, no interior do Estado. Um ambiente afastado da cidade, em meio ao bucolismo acolhedor e aconchegante de verdes e belas paisagens que tentam favorecer o clima de oração e silêncio. Foi em momentos desse tipo que Cristo, muitas vezes, tentou inculcar em seus seguidores a necessidade do repouso e da oração. Assim, bebendo na fonte das Escrituras, não podemos deixar de citar o irrecusável convite feito pelo Mestre de Nazaré aos apóstolos, num contexto de partilha da experiência da missão que lhes fora confiada: “Os Apóstolos reuniram-se com Jesus e contaram tudo o que tinham feito e ensinado. Ele disse: ‘Vinde vós, sozinhos, a um lugar deserto e descansai um pouco’. Com efeito, os que chegavam e os que partiam eram tantos que não tinham tempo nem de comer. E foram de barco a um lugar deserto, afastado” (Mc 6,30-32). A primeira comunidade apostólica, com o seu Mestre e ensinada por ele, sabia da preciosidade do expediente inevitável do recolhimento interior para renovar as energias em função do apostolado.
Fazendo o exame de consciência; revendo tantas situações de imperfeição no baú da existência; tentando firmar os passos com mais segurança no caminho de Cristo; olhando a urgência da superação dos conflitos internos e externos da vida própria do consagrado; permitindo que a graça de Cristo refaça os passos vacilantes da liberdade interior do seguimento; buscando o exemplo salutar e edificante de tantos irmãos; com a alma aberta e desejosa de maior intimidade com Cristo e, consequentemente, com Deus e com os irmãos; na abertura espiritual às moções do Espírito Santo, motivadas pelo pregador do retiro; enfim, prostrados espiritualmente de joelhos diante do Bom Pastor, guia supremo do rebanho, tudo deve sentir o toque do anseio de renovação do espírito sacerdotal e do empenho missionário ao voltar às atividades pastorais no meio do povo. Conhecidas as oscilações comportamentais dos apóstolos de Cristo – um que trai, outro que nega, outros que querem um lugar especial à sua direita no reino dos céus, mesmo tendo de beber com ele do “cálice amargo” de sua paixão, outros que pretendem enterrar o pai ou a mãe, antes da decisão do seguimento – tudo faz pensar na suavidade de Jesus acalentando o coração de todos para, com coragem, decidirem-se livremente por Ele. “Sim, Senhor Jesus, tu que conheces profundamente o que vai no coração de cada um dos teus seguidores modernos, de maneira especial no coração dos teus sacerdotes, também cercados por tantos apelos que vão contra o ideal sublime da consagração, concede-lhes a coragem de que precisam para vencer a solidão e a indiferença, o desejo de plenitude satisfeito pela aparência enganosa de futilidades ilusórias e por isso passageiras; ajuda-os na superação das angústias que lhes tiram a serenidade e a paz interior; ensina-lhes a fortaleza da perseverança nos aparentes fracassos do apostolado, na esterilidade da incompreensão, no sofrimento da solidão ou na maledicência dos inimigos. Sim, Senhor, coloca no íntimo de seu coração sacerdotal ‘um sim que dure toda a vida como um fogo que sempre arda’. Amém”.
Que os sacerdotes rezem, também, como São Gregório Nazianzeno, bispo e doutor da Igreja nos primeiros séculos do Cristianismo: “Ó Cristo, fortifica-me! O teu servo está exausto, à beira da morte [não propriamente física ou biológica!]. A minha voz que cantou para ti, está calada. Como posso suportá-lo? Dá-me força, não abandones o teu sacerdote. Eu quero curar-me, e assim cantar o teu louvor e purificar o teu povo. Imploro-te, com toda a minha força, jamais me deixes. Se na dificuldade eu te traí, quero retornar a ti”.
Para quem pensa que todos os sacerdotes são “pedófilos” – uma palavra que parece encher a boca da modernidade de maldição contra todos os padres – convém lembrar o sacrifício e a imolação generosa de muitos sacerdotes que, por amor e fidelidade a Cristo, vivem apagados no anonimato da doação em atividades que consomem toda a sua vida, toda a sua existência. Desse modo, o retiro espiritual é um momento fecundo em que os sacerdotes renovam sua adesão a Cristo no esforço de resposta e identidade vocacional. Diante da grandeza de seu ministério, que leva aos corações despedaçados o consolo do acolhimento de Cristo, o bálsamo da caridade operante de seus gestos abre as portas do céu. Quem mais do que o sacerdote pode ajudar alguém a ver, com realismo regenerativo, as mazelas de sua alma? Num mundo doentio e depressivo, ansioso e pouco reflexivo, barulhento e surdo para os apelos mais prementes da sede de felicidade, ele, mais do que qualquer psicólogo ou psiquiatra, toca as feridas necessitadas de cura interior. Por isso que ele se serve do encontro consigo mesmo e com a voz divina que fala na consciência do chamado, sensibilizando-o no revigoramento da vocação, como sugere São Paulo.
Na verdade, trata-se da anuência discreta, mas exigente, quanto à orientação de São Paulo: “Exorto-vos, pois, eu, prisioneiro no Senhor, a andardes de modo digno da vocação a que fostes chamados: com toda humildade e mansidão, com longanimidade, suportando-vos uns aos outros com amor [...]” (Ef 4,1-2); “Por esse motivo, exorto-vos a reavivar o dom espiritual que Deus depositou em ti pela imposição de minhas mãos. Pois Deus não nos deu um espírito de medo, mas um espírito de força, de amor e de sobriedade” (2Tm 1,6-7); “Vede, pois, quem sois, irmãos, vós que recebestes o chamado de Deus; não há entre vós muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de família prestigiosa. Mas o que é loucura no mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios; e o que é a fraqueza do mundo Deus o escolheu para confundir o que é forte; e, o que é no mundo vil e desprezado, o que não é, Deus escolheu para reduzir a nada o que é, a fim de que nenhuma criatura possa vangloriar-se diante de Deus” (1Cor 1,26-29). Apesar de complexo, o pensamento de São Paulo indica a direção da zona de mistério dentro da qual o candidato realiza um projeto não propriamente seu. Deus conta mais com a disponibilidade do coração do que com as qualidades ou capacidades intelectivas ou racionais da lógica humana. Quem poderia elucidar de modo claro e suficiente o desdobramento ulterior desse mistério? De fato, é o próprio Cristo quem afirma: “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos designei para irdes e produzirdes fruto e para que o vosso fruto permaneça” (Jo 15,16).
Como fermento na massa, como sal num mundo insosso, como luz que brilha nas trevas do afastamento de Deus, os padres têm muito a oferecer à comunidade, à edificação de um mundo melhor, à construção do próprio reino de Deus na terra, porquanto, qual “administradores dos bens divinos”, oferecem a todos o próprio Jesus, pão para a vida do mundo. Rezemos, pois, pelos sacerdotes em nossas comunidades, acolhendo-os com afeto e solicitude cristã, a fim de que também se sintam amparados pelo nosso apreço à generosidade vocacional de seu ministério.