sexta-feira, 1 de julho de 2011

Mulier Amicta Sole

Mulier Amicta Sole

Não gostaria que o mês de maio chegasse ao seu término, sem apresentar uma reflexão sobre Maria, a Mãe de Jesus, vista no bojo da reflexão como “uma mulher vestida com o sol”. Encontramo-nos diante de um texto do Apocalipse de São João: “Um sinal grandioso apareceu no céu: uma mulher vestida com o sol [mulier amicta sole], tendo a lua sob os seus pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas; estava grávida e gritava, entre as dores do parto, atormentada para dar à luz” (Ap 12,1-2).
Inicialmente, convém lembrar que o livro do Apocalipse de São João – “a Águia de Patmos”, a ilha onde ele recebeu a revelação, e onde ele escreveu esse livro – não é de fácil compreensão. Sua linguagem está profundamente marcada por um simbolismo, às vezes, brumoso e indecifrável, atrás do qual se esconde o sentido de sua mensagem. Por isso que, segundo Ignace de la Potterie, somente a linguagem simbólica pode trazer ao descoberto a profundidade da vida, por que a dimensão profunda da vida é inefável. Para expressá-lo em termos teológicos, o mistério, o transcendente, faz-se unicamente perceptível por meio do símbolo, no qual se transparenta, isto é, através do qual ele vagueia, aparece e desponta como a luz envolvente que dissipa as trevas da incompreensão total. Assim, tanto a linguagem analítica quanto o simbolismo são necessários. Sem dúvida, o simbolismo é mais vago e impreciso, embora seja, também, mais sugestivo, rico e profundo.
A literatura cristã sempre viu em Maria, a Mãe de Jesus, a máxima expressão de tudo aquilo que pode acontecer a uma pessoa, totalmente iluminada pela presença divina em sua vida. De fato, Deus mesmo é a fonte suprema da luminosidade com que, na pobreza de nossa intuição, conseguimos vislumbrar o alcance inaudito de sua santidade, estendida sobre os homens por puro amor e misericórdia. Na Sagrada Escritura, a palavra “sol” [do grego: hēlios; e do hebraico, acadiano e árabe: shemesh], entre outros significados, simboliza Deus: “Um governante justo é ‘como a luz da manhã, quando sai o sol, como manhã sem nuvens’ (2Sm 23,4). O próprio Senhor é comparado ao sol porque traz calor e prosperidade para a vida do crente: ‘o SENHOR é sol e escudo; o SENHOR dá glória e graça’ (Sl 84,11 [12])” (Dicionário Internacional de Teologia do AT). Comentando esse versículo, Schökel-Carniti comentam: “Ainda que o título do Sol aplicado a Deus só se leia aqui, atributos solares não são raros no AT. Vejam-se Dt 33,2; Is 60 e 62, o estribilho do Sl 57. [...] Os dois títulos do hebraico [quais sejam “sol” e “escudo”], combinados, oferecem-nos uma visão sugestiva: a luminosidade gloriosa do Senhor, sua proteção firme. A essa luz o homem pode caminhar ‘honradamente’, nessa proteção pode ‘confiar’”. Certamente, essa luz material que inunda nossos olhos e não permite que nos fixemos, de maneira direta, nela, contrasta com a escuridão material que precipita nossos passos na incerteza, na insegurança. Ou seja, luz e trevas traduzem o estado mais espiritual do que psicológico da vida interior diante de Deus ou afastada d’Ele. Todavia, a bela metáfora da luz divina alude à luminosidade de Deus que se derrama sobre as criaturas, especialmente, no sentido pelo qual Ele toma para si a nossa realidade humana, tocada pelo pecado, e a transforma radicalmente no seu amor. Essa é a experiência que Maria faz pelo mistério da Redenção de Cristo, o seu Filho.
Por sua vez, Gianfranco Ravasi afirma: “Um famoso teólogo, A.D. Sertillanges [...] escrevia: ‘Maria não é posta fora da redenção, é redimida como todos nós pelo seu Filho. Ela, porém, é totalmente iluminada pela redenção, desde sua conceição, para que o próprio sol, Cristo, não seja de modo algum ofuscado. Os demais serão apenas purificados; ela é totalmente pura. Mãe do dia, ela não experimentará a noite, será a primavera renovada, a suave brisa do mundo’”. De fato, a humanidade transfigurada de Maria é o espelho luminoso diante do qual contemplamos nossa vida futura no céu. Mas, sua luminosidade é reflexo da ressurreição de seu divino Filho, pois Ele é a fonte de toda pureza, de toda perfeição, de toda a imaculada conceição com que Maria foi agraciada. Ela é a “Filha de Sião”, e no Novo Testamento, ela é figura da Igreja, esposa de Cristo. Como escreveu J. McHug, citado por Ignace de la Potterie, a mulher vestida de sol é o símbolo da Igreja indestrutível, da Igreja Eterna. Ou seja, que a Mulher de Apocalipse 12, é a “Mulher Sião”, que agora representa a Igreja, e, assim, penetrada dos sentimentos de seu Esposo, Cristo, deve suportar sofrimentos e perseguições, sem se deixar abater, de modo que possa alcançar, finalmente, a vitória como Esposa do Cordeiro.
Inspirado num artigo escrito por A. Feuillet, Ignace de la Potterie concorda com o fato de que o fundo bíblico referente aos astros celestes que servem para ornar a imagem de Maria, a “Mulher”, devemos buscá-lo em Is 60,1.19-21 e em um versículo do livro do Cântico dos Cânticos, que por sua vez, inspira-se em Is 60. Resplandecente de luz, a Nova Jerusalém é descrita por Is 60, em todo o seu resplendor: “Põe-te em pé, resplandece, porque tua luz é chegada, a glória de Iahweh raia sobre ti. [...] Não terás mais o sol como luz do dia, nem o clarão da lua te iluminará, porque Iahweh será tua luz sempre, e teu Deus será o teu resplendor. Teu sol não voltará a pôr-se, a tua lua não minguará, porque Iahweh te servirá de luz eterna e os dias do teu luto cessarão. Teu povo, todo constituído de justos, possuirá a terra para sempre, como um renovo de minha própria plantação, como obra das minas mãos, para minha glória” (Is 60,1.19-21). Comentando esse texto, Ignace de la Potterie considera que é preciso fixar a atenção em alguns detalhes. A Sião escatológica resplandece em todo o seu esplendor e magnificência; contudo, ela não brilha com sua própria, mas graças à glória de Deus que resplandece sobre ela; enfim, ela está revestida da luz do Senhor. Destarte, em Apocalipse 21, diz-se, de igual maneira, que na Sião escatológica não há sol nem lua. Tais astros já não serão necessários, “pois a glória de Deus a ilumina, e sua lâmpada é o Cordeiro” (Ap 21,23). Sabiamente, a teologia bimilenar da Igreja de Cristo, apresenta Maria como figura da Igreja e da Jerusalém celeste, iluminadas pela própria luz de Deus.
Outro livro da Bíblia, o Cântico dos Cânticos deleita-nos, de maneira solene, com sua bela poesia, também, referida à figura da Mulher, que é Maria: “Quem é essa que desponta como a aurora, bela como a lua, fulgurante como o sol, terrível como esquadrão com bandeiras desfraldadas?” (Ct 6,10). Conforme o pensamento de Ignace de la Potterie, a lua sofre variações, e muitos autores viram nesse símbolo uma imagem dos aspectos que podem ser aplicados às mudanças incessantes da história humana. Portanto, na mente do autor do Apocalipse, a lua, debaixo dos pés da mulher, poderia indicar que toda a história humana lhe está submetida. Em outras palavras, a Igreja eterna, Corpo de Cristo, domina as mutações dos tempos e as revoluções da história. Na concepção desse autor, a imagem da lua é muito sugestiva nos textos apresentados. A lua pode ser muito formosa. Quando ela está cheia, a natureza no-la apresenta magnífica no profundo silêncio da noite. Tudo produz uma sensação de tranquilidade, de calma e de paz. Mas, a pálida luz da lua não lhe pertence. Trata-se de uma luz recebida. A beleza da lua nada mais é do que um reflexo do esplendor do sol. Aí, então, apóia-se o simbolismo do mysterium lunae – do “mistério da lua” – tão querido pelos Padres da Igreja, e, amiúde, aplicado a Maria pulchra ut luna – “formosa como a lua” (Ct 6,10).
Na certeza de que o esplendor da formosura de Maria também é fruto da bondade de Deus, seu Salvador, que ela nos conceda alcançar, com firme esperança, a futura bem-aventurança, no céu, de modo que possamos usufruir da plenitude da luminosa ressurreição de seu Filho, o nosso Redentor eterno. Assim, estaremos eternamente iluminados pelo Sol que desconhece ocaso, Cristo glorioso.