domingo, 17 de julho de 2011

Trilogia à Amizade


Quando Uma Amizade se Torna Inconveniente

 

 


Por ocasião do dia Internacional da Amizade, 20 de julho, gostaria de partilhar uma reflexão sobre o bom sentimento da amizade que alegra nosso coração, mas, também pode torná-lo triste e amargurado se não bem vivido dentro dos limites relacionais da simpatia recíproca...
Quando uma amizade se torna inconveniente, já não é mais amizade. Todos nós gostamos de ter bons amigos e de cultivar boas amizades, e isto é um grande bem. Fujam de mim os amigos e, de mim, fugirão todos os meus tesouros. Os antigos gregos já haviam descoberto esta profunda e misteriosa realidade da convivência humana, sobretudo, diante da possibilidade de ações e reações, simpatias e antipatias, no confronto do outro. Do vocabulário grego, a palavra “simpatia” significa “sofrer com”, enquanto, a “antipatia” seria, justamente, o contrário, isto é, uma involuntária incapacidade de se “compadecer” diante do sofrimento de outrem. Contudo, os fatores que constituem a abertura ou o fechamento da condição psíquico-afetiva, ampliada pela integralidade do ser pessoa, nem sempre são muito evidentes. O que, por exemplo, faz-me ser atraído por uma pessoa com a qual, a partir do primeiro encontro, vejo a possibilidade de cultivar uma profícua amizade? Ou, opostamente, o que me leva a uma antipatia não desejada, a uma recusa inexplicável, também, a partir do primeiro contato?
No mundo da tolerância ou da intransigência, na atitude relacional com o outro, o brilho de uma bonita amizade pode transformar-se no sentimento espinhosamente incômodo de quem não sabe lidar com certos inconvenientes ou se adequar às exigências do cultivo de uma verdadeira e autêntica amizade. Com isto, quero dizer que, na impossibilidade de conhecermos, de modo profundo, o outro, sua vida, sua história, suas virtudes ou limitações, suas afeiçoes ou desafetos, corremos o risco de jogar fora ou destruir o belo sentimento da estima e do apreço que temos pelos que nos são simpáticos e caros. É como se a amizade fosse um imenso espelho quebrado pela pedra da imprudência, nem sempre consciente, da inexperiência, mas cujos pedaços, cortantes, ferem profundamente, deixando marcas de chagas abertas, e que podem durar por muito tempo. Na verdade, a amizade nada mais é do que o reflexo espontâneo, livre, sem obstáculo nem constrangimento, da simpatia recíproca; e, nestas condições, precisamos estar muito atentos para não impor nosso modo ou jeito de ser amigo. Aliás, antes de termos amigos, precisamos saber ser amigos. Não há o ditado que diz que a “confiança não se impõe, mas, conquista-se”? A amizade vai da mesma direção. Por conseguinte, quando imaginamos que podemos exigir alguma coisa do suposto amigo, então, é sinal de que algo está errado no nosso conceito de querer bem, pois a amizade simplesmente é e deixa ser; não exige nem impõe nada da nossa peculiar maneira de desejar ou querer possuir, ao modo nosso, uma resposta condigna ao pedido impertinente da benevolência alheia. Por isso, precisamos conhecer-nos melhor.
Sócrates tinha razão quando afirmava: “Conhece-te a ti mesmo”. Pensando como que, em uma cristianização dessa expressão, poderíamos citar a exortação de Cristo, quando disse: “Tira primeiro a trave do teu olho, e então verás bem para tirar o cisco do olho do teu irmão [...]” (Lc 6,42). Mas o que isto tem a ver com a amizade? Aparentemente, nada. Porém, lançando um olhar mais profundo sobre a verdade escondida nestas palavras, descobrimos, de chofre, que ela nos revela o tom da proximidade que julgamos ter com os outros na hora da crítica e da censura que, não poucas vezes, desferimos contra nossos amigos. A esta altura, com certeza, o que parecia amizade já se transformou, quase irreversivelmente, numa confusão de reações e sentimentos que, por certo, não traduzem, na prática, o que deveria ser a amizade desinteressada, pois, quem realmente é amigo vive a amizade na serenidade de seu coração e não se deixa perturbar pelas ondas das reminiscências nostálgicas de quem se pensa abandonado ou, até mesmo, esquecido pelo amigo.
Não existe, nem poderia existir, uma amizade unilateral, que parte somente de uma direção. Ela seria, escandalosamente, paradoxal em si mesma, e não encontraria, nunca, o seu ponto de chegada. Em que direção correria um rio se não soubesse que uma outra fluente o espera, talvez, mais caudalosamente? Destarte, sem esforço de muita inspiração, aferimos que a amizade, livre de provocantes constrangimentos, exige de si mesma a fatalidade de uma correspondência segura, estável e permanente... “A simpatia faz apelo a uma correspondência!” (Charles André Bernard). Mas, essa “correspondência”, sendo uma forma de aceitação do outro, não “cega nem esconde as fraquezas do outro, mas as compreende e, sem jamais abandonar a sua intenção espiritual, vive na paciência imitando a pedagogia de Cristo que formava, cada vez um pouco, seus discípulos às exigências da Cruz” (Charles André Bernard).
No âmbito da prova e da duração de uma amizade, como em “qualquer amor profundo, a amizade recusa os limites do tempo. De fato, o encontro interpessoal cria a própria forma de duração: um instante de plenitude simbolicamente mais vizinho à atualidade eterna do que ao escorrer do tempo. Porém, seria muito imprudente não compreender que a amizade humana, enquanto sentimento deve submeter-se à prova da duração. [...] Se a fidelidade do amigo deve ser colocada à prova antes que se instaure uma confiança total, ela deve também acompanhar o crescimento de tal confiança. Realmente, o tempo ameaça qualquer afeto. Talvez, aconteça assim porque, no nosso próprio coração, cada movimento em direção ao outro deve vencer no próprio tempo o desejo de autonomia e o medo das desilusões? De qualquer maneira, constatamos que a amizade perfeita é rara. Ela é sempre uma conquista, não um dado previsto” (Charles André Bernard). Por conseguinte, “a fidelidade tem por objetivo superar todas as insídias que o tempo semeia sobre o caminho do afeto. Somente da fidelidade de Deus podemos estar seguros, porque o seu coração abriu-se uma vez por todas. Quanto a nós, ao contrário, a fidelidade deve renovar-se constantemente” (Charles André Bernard).
Quanto à convivência, uma real, perturbadora e perigosa ameaça à amizade é o ciúme que, descontrolado, leva à indiscreta e perniciosa maldição da maledicência. Por que não conseguimos ser amigos, tentamos envenenar e destruir as amizades entre as pessoas com as quais partilhamos o âmbito e o espaço do convívio diário. É o sintoma mais grave e agudo de um sentimento doloroso e inquietante, suscitado pela flagrante incompetência de quem gostaria de possuir bons amigos, sem o conseguir. Quantos já não foram vítimas desta mefistofélica e satânica conspiração leviana dos que semeiam a gramínea nociva da cizânia que destrói, implacavelmente, a estabilidade das boas relações? Aqui, cada um deveria fazer o seu exame de consciência, debruçando-se sobre si mesmo, para favorecer a indispensável cura de sua inclinação mórbida, doentia e, até mesmo, deletéria da paz na constituição do frágil tecido da producente sociabilidade. Indiscutivelmente, ninguém poderia negar que o ciúme seja a síndrome, o conjunto da presença de vários outros fatores do naufrágio pessoal de quem se aventura no barco agitado do conluio secreto que, exposto às lufadas incessantes da turbulenta desconfiança, afundará consigo os atores não cônscios e inocentes de sua trama maligna. Tais pessoas poderiam ser comparadas a uma “avalanche de lama que sente a necessidade primária de fazer tudo precipitar consigo”. São pessoas que, desequilibradas no auge de sua própria infelicidade e insatisfação pessoal, não se contentam com a felicidade alheia e tentam destruí-la. Na verdade, o ciumento, “com os seus olhos injetados do sangue da ira”, da inveja, da rivalidade e da competição, torna-se a primeira vítima da própria infâmia, como geralmente acontece com os traidores. Mas, ele não se fere sozinho. Deixando as marcas indeléveis da sua violência em todos os envolvidos na teia de sua intriga infernal, os sobreviventes carregam, por tempo indeterminado, os dissabores amargos da experiência sofrida, e que são consequências inelutáveis da vulnerabilidade impaciente de quem não se apercebe dos riscos gritantes e clamorosos da presença dos espiões acima de qualquer suspeita, acima de qualquer pueril intuição.
Em uma palavra, não podemos assumir estruturas ou formas de instrumentalismo nas atitudes comportamentais referentes aos nossos fiéis e bons amigos, pois “quem encontrou um amigo, encontrou um tesouro”. E os amigos são tesouros preciosos, ainda se frágeis, que precisam de bons cuidados, necessitam de bons tratos, pois “a um amigo não se ofende nem por brincadeira”. Saiba, pois, tratar bem e conservar pela vida afora seus verdadeiros, fiéis e bons amigos.

Tributo à Amizade 



Pensando a amizade. Mas, será que a amizade existe? O que significa esse sentimento gentil que aproxima duas pessoas ou várias pessoas pelo élan da simpatia? Você, caro leitor, possui algum amigo? Pensa que tem alguma amizade pela qual seja possível e valha a pena arriscar a confiança e a entrega de segredos que são somente seus? Será que a amizade verdadeira, autêntica, não é apenas um “ente de razão”, como diria a filosofia de Platão, em que muitas realidades, aparentemente concretas, existem somente no “mundo das ideias”, longínquo e distante do sabor agradável dos bens da vida? Pensando assim, gostaria de aproveitar uma frase negativa do Pe. Héber Salvador de Lima, para fazer uma oportuna reflexão sobre a amizade e os nossos amigos. Parto, portanto, de uma premissa negativa: “O falso amigo é como a sombra; deixa de seguir-nos quando chega a noite do sofrimento”. Não por acaso, os verdadeiros amigos são reconhecidos na hora das dificuldades, na hora das provações. Quem nunca experimentou na pele a dura verdade dessas palavras? De fato, na expressão de Ênio, poeta latino do século terceiro antes de Cristo, “o amigo certo se reconhece numa situação incerta”.
Quando estamos felizes, e podemos partilhar os benefícios desse estado de espírito, muitos são os circundantes que nos bajulam e até roubam-nos momentos de intensa cordialidade, amizade, encontros fortuitos provocados pelo interesse da indiscrição conveniente do relacionamento recíproco. Se a amizade é realmente o maior bem da vida, como afirmavam os gregos, o reverso de sua moeda não deixa de ser doloroso pelo acinte da falsidade descoberta nas desventuras da vida. Segundo já disseram, o verdadeiro amigo é aquele que permanece conosco quando todos vão embora da nossa vida, de modo especial quando devemos enfrentar as tempestades que o destino nos reserva, qual ciladas traiçoeiras, escondidas na inconsciência do tempo. Portanto, dentro da moldura do claro-escuro de nossos amigos, a verdade é que, vez por outra, devemos, não somente repensar nossas amizades, mas, sobretudo, analisar e constatar quem realmente é nosso amigo, pois não é apenas no elenco das novelas que encontramos supostos e falsos amigos.
O amigo verdadeiro é aquele diante de quem nós podemos ser nós mesmos, sem máscaras, sem fingimento, sem dissimulação, pois esconder-se do outro já é trair a liberdade de olhar nossa própria identidade no mais recôndito da consciência. Eis porque a amizade verdadeira traduz o sentido pleno da presença ou da lembrança do amigo que alegra o coração, tornando-o feliz. Não é verdade que, quando os amigos permanecem no horizonte de nossa existência, sua lembrança já é uma forma de alegre encontro? Que não importa o tempo cronológico da distância, mas, a proximidade psico-afetiva que nem a dimensão geográfica consegue apagar? Quantos se foram da nossa vida, mas, permanecem vivos na galeria da memória, enchendo de encanto e satisfação a certeza do coração? Amizade é mais do que estar juntos. É o sentimento que me coloca dentro das inquietações do outro, tentando ajudá-lo na superação de seus conflitos, no encontro de seu caminho, na realização de sua felicidade. É o sentimento que me leva a acolher o outro sem questionar as razões de suas razões, respeitando o silêncio de suas feridas e as lágrimas de seu desabafo. Mas, os amigos também se dão ao direito de refletir, dialogar e investigar a credibilidade da confiança que é depositada no canteiro da reciprocidade. Do contrário, teríamos de encontrar o amigo perfeito, o amigo dos sonhos, aquele amigo que poderia ser uma síntese de todas as perfeições que gostaríamos de encontrar em alguém.
Será que poderíamos usufruir da esperança de uma amizade tão autêntica que não encontraria espaço concreto no relacionamento dos encontros e desencontros fortuitos da cotidianidade? A amizade de um sonho seria uma amizade sem rosto, sem nome, fantasiosa, ideal. E poderia ser descrita assim: Era apenas um sonho, mas a nitidez da visibilidade de sua imagem era perceptível, muito real. Ele – o amigo – apareceu de repente, surpreendentemente, saindo do esconderijo de sua timidez, com passos lentos e silenciosos, com o olhar circunspeto e curioso de quem gostaria de confidenciar um segredo. Um suave sorriso estampava o seu rosto, e os olhos iluminavam o semblante de uma bela recordação. A recordação de alguém alegre, feliz, contente, jovial. O mesmo semblante de menino puro, inteligente, atencioso, que esperava o momento justo ou oportuno para um brevíssimo diálogo; uma pergunta tímida e uma resposta incerta; uma ligeira manifestação de entusiasmo! A alegria do reencontro, um breve abraço, e, mais uma vez, ele se ausentava como um pássaro livre, voando e retornando para os galhos escondidos de seu recolhimento, no ninho de seu prolongado silêncio. No entanto, seu silêncio não é o silêncio de um sonho; seu desaparecimento não é o desaparecimento de um sonho; sua distância não é a distância de um sonho; sua saudade não é a saudade de um sonho. Mas, sua amizade parece ser a amizade de um sonho... Sonho de esporádicos reencontros. Sonho de felicidades partilhadas. Sonho de tristezas divididas. Sonho de auxílios recíprocos. Sonho de realizações alcançadas. Sonho da confiança de outrora. Sonho da simplicidade das crianças. Sonho da liberdade da confidência. Sonho do acolhimento perene. Enfim, sonho de tantos outros sonhos possíveis, que a aparente indiferença, muitas vezes, impede de serem realizados! Por que seu silêncio? Por que sua ausência? Por que seu distanciamento? Por que tanta discrição? Sim, não encontro motivações, não encontro respostas, não entendo seus gestos. Porém, aceito e espero que, pelo menos no sonho, o trânsito livre do reencontro desperte na vida o sentimento renovado da amizade serena, que, somente no sonho do tempo interior, não pode ser perturbada, por que livre, espontânea, incondicionada, e, assim, desvencilhada das armadilhas ofensivas da realidade. Esse seria o amigo ideal, mas ele não existe.
Na contramão dos sentimentos, ninguém está isento de contrariar-se pelos embates da luta pela amizade. Infelizmente, na rede de nossos amigos, encontramos pessoas falsas, fingidas, fofoqueiras, mesquinhas, interesseiras, hipócritas, traidoras. Todas essas categorias psicológicas da perturbação do bem-querer, também podem ter infestado e contaminado nosso coração, nossos afetos. As pessoas falsas abrem em nossa alma feridas difíceis de cicatrizarem. Precisamos ficar atentos ao veneno letal de suas investidas. Também há aqueles amigos que não duram no tempo. Talvez, porque sejam interesseiros, pois, como escreveu Gabriel Chalita, “a amizade interesseira tem prazo de validade”. Com efeito, trata-se de uma das dimensões deturpadas e contraproducentes do amor, da própria amizade, como, às vezes, é entendido esse sentimento tão confuso quanto mal explicado e, até, difícil de ser demonstrado na singularidade exigente de sua transparência. Como pode o amor acabar? Como é possível a amizade deixar de ser a beleza encontrada por dois ou mais olhares? Dessa maneira, tentar ou lutar para conservar uma bonita amizade, exige a pretensão serena da confiabilidade. De fato, muitas amizades sadias se firmam ao relento frio e indiferente da não provocativa vontade de estar com o outro, porquanto há amigos distantes que estão pertos, do mesmo modo como há amigos próximos que estão distantes. A verdadeira amizade desconhece fronteiras geográficas, temporais. No entanto, não é por que a convivência possa estragar ou deteriorar a virtude da simpatia recíproca, mas, sim, pelo fato de que a amizade é mais do que uma presença. Ela é, na verdade, a feliz possibilidade, ainda se remota, do reencontro oportuno de quem nunca esteve, realmente, distante, porque sempre esteve presente na teia da saudade que embala as boas recordações dos autênticos amigos.
Se, como diz o pensamento, “o amigo é o irmão que o coração escolheu”, que possamos encontrar muitos irmãos ao nível da amizade que, conforme a antiga concepção grega, ainda continua sendo um dos maiores bens da vida. Por isso que a Bíblia afirma com total segurança: “Em toda ocasião ama o amigo, um irmão nasce para o perigo” (Pr 17,17); “Há amigos que levam à ruína e há amigos mais queridos do que irmãos” (Pr 18,24). Enfim, quem encontra um amigo, encontra um tesouro. Um tesouro muito precioso.

O milagre da Amizade 




Num processo psicológico de desenvolvimento normal, todas as características do aprendizado acontecem dentro da família. De fato, a família é o berço de todos os arranjos comportamentais posteriores ao início da própria vida. Quando, por exemplo, olhamos para os pais que acolhem em seu lar a chegada de uma criança, sabemos da felicidade que invade o coração de todos, inclusive, dos parentes, vizinhos e amigos. A família se torna, então, o aconchego ideal da segurança dos filhos. Assim, totalmente, dependente, no espírito pueril dos iniciados na aventura da vida, laços de amizade e afetividade são construídos durante o avanço cronológico e psíquico físico do indivíduo. Portanto, mimos e cuidados são dispensados à proteção da criança, algo que os pais nunca devem negligenciar.
Todo mundo se encanta com as criaturinhas lindas e risonhas que, no mundo confuso e complexo dos adultos, brotam como esperança de renovação do brilho circunstancial em que vivem. E, evidentemente, tudo isso é muito positivo. Mas, as crianças crescem, o ser humano se desenvolve, e muitas categorias da educação primária e informal recebida, fortalecem os trejeitos temperamentais do caráter da pessoa, tanto para a prática do bem quanto para execução do mal. Então, pode acontecer que o gênero formativo do sujeito degenere em conjunturas imprevisíveis da brutalidade do abismo interior de cada pessoa. Ou seja, com o passar do tempo, os laços anteriormente estabelecidos vão perdendo força, e o distanciamento dos pais em relação aos filhos, e vice-versa, sobretudo, na fase de busca de identificação de grupo, faz com que a confiança e a possibilidade do diálogo tornem o relacionamento estéril e improdutivo. De modo consequente, os atropelos da convivência fecham, paulatinamente, os caminhos da realização frutífera do milagre da amizade. Com efeito, quando os laços afetivos se rompem, a tendência é o deslocamento prejudicial do ponto de equilíbrio da reciprocidade no âmbito da afeição para o desafeto irreversível. Isso significa dizer que para dar estabilidade ao relacionamento cúmplice da camaradagem espontânea e fluente, é necessário a criatividade, até mesmo lúdica, para a superação dos conflitos normais do ser pessoa.
E ser pessoa é não se escandalizar de tudo aquilo que, na expectativa do outro, possa frustrar ou limitar a correspondência livre da amizade esperada, embora devamos dar atenção ao que convém à pureza dos sentimentos que salvaguardam a beleza da união amical. Essa deve ser vivida, de modo especial, dentro do círculo das pessoas com quem convivemos. Infelizmente, às vezes, vamos buscar longe de nossos circundantes a fraternidade dos bons relacionamentos, e deixamos passar a permanente oportunidade do encontro verdadeiro com os que estão ao nosso lado. Por que será que existe tanta desconfiança, falta de diálogo e ausência de amizade sincera entre pais e filhos, marido e mulher, irmãos e irmãs? Se não estamos abertos ao acolhimento dos nossos, respeitando aquilo que é característica intrínseca ao seu modo de ver o mundo e se comportar em relação a ele, como poderíamos favorecer o milagre da amizade? Como favorecer esse milagre se não nos dispomos a estender a mão às pessoas quando as dificuldades batem à porta do inesperado? Os filhos em crise e presos em situações limites do envolvimento com drogas e alcoolismo, entre tantos outros modismos perversos de degradação da integridade de seu caráter e da sua personalidade, a quem deverão dirigir-se para buscar ajuda? Aos pais ou aos estranhos? Se não é na hora das tempestades existenciais que vamos socorrer os nossos, em que conjunturas da reciprocação seria?
Na verdade, o milagre da amizade também passa pela ponte dos sacrifícios, e que sacrifícios!. O importante é a possibilidade que damos de as pessoas refazerem suas escolhas com o auxílio de nossa compreensão. Lembro-me de um pai, cujo filho vivia pedindo para sair de casa e ir morar com um parente distante. O pai somente compreendeu o seu extremo pedido de socorro, quando seu filho foi encontrado morto, assassinado, num terreno baldio de sua cidade. Imagino a aflição de um filho que não tem coragem de desabafar-se com o seu próprio pai, preocupado com a reação violenta da não aceitação da dura prova, ao saber que seu filho estava envolvido com drogas!. Não deveríamos chegar a esses extremos, pois onde o milagre da amizade não acontece, verdadeiramente, perdemos amigos e parentes pelo capricho da covardia insana das enfadonhas provocações da existência. De quantas trincheiras ainda vamos continuar prisioneiros nos porões de nossos próprios lares, no seio de nossas próprias famílias? O que, de fato, poderíamos fazer, em todas as dimensões da nossa vida e com todas as pessoas que constituem a estampa vivencial do quotidiano, a fim de patrocinar e favorecer o milagre da amizade?
Desafortunadamente, vivemos num mundo agitado e apressado, cansado e estressado, desprovido de cortesia e atenção pelo outro, e, assim, vamos descendo o precipício do desinteresse real pelos que nos são caros e preciosos na concretização do milagre da amizade. Na verdade, deveríamos não nos esquecer do milagre incondicional da amizade que Deus tem por todos nós, por todos os homens. Sem dúvida, se formos capazes de elevar nossos olhos para Ele, demonstrando clamor e desejo de inspirações para vencer nossos aparentes fracassos relacionais, com certeza, encontraremos reposta condigna à sede de melhor realização de nossos projetos familiares. Assim, a fé, a esperança e a caridade, iluminariam nosso caminho, devolvendo-nos a convicção de que nem tudo está perdido. Cito um pensamento do Papa Bento XVI: “A esperança manifesta-se praticamente na virtude da paciência, que não esmorece no bem nem sequer diante de um aparente insucesso, e da humildade, que aceita o mistério de Deus e confia nele mesmo na escuridão. A fé mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por nós e assim gera em nós a certeza vitoriosa de que isto é mesmo verdade: Deus é amor! Desse modo, ela, a fé, transforma a nossa impaciência e as nossas dúvidas em esperança segura de que Deus tem o mundo nas mãos e que, não obstante todas as trevas, ele vence, como revela de forma esplendorosa o Apocalipse, no final, com as suas imagens impressionantes. A fé, que toma consciência do amor de Deus revelado no coração trespassado de Jesus na cruz, suscita por sua vez o amor. Aquele amor divino é a luz – fundamentalmente, única – que ilumina incessantemente um mundo às escuras e nos dá coragem de viver e agir. O amor [o milagre da amizade profunda, com Deus e com os irmãos] é possível, e nós somos capazes de o praticar porque criados à imagem de Deus. Viver o amor e, desse modo, fazer entrar a luz de Deus no mundo: tal é o convite que vos queria deixar com a presente encíclica [Deus caritas est!]”. A palavra do Papa Bento XVI, deve inspirar-nos humildade.
Somente pelo dom valioso da virtude da humildade, reconhecemos que não estamos sozinhos no mundo, e que, ao lado de nossos companheiros de viagens, parente e amigos, Deus está presente no universo humano dos relacionamentos, mesmo se aparentemente oculto. Se colocarmos Deus em nossos relacionamentos, certamente, tudo poderá mudar de direção, revitalizando o apreço e a estima que devemos nutrir uns pelos outros na dinâmica gratuidade do saber ser amigo, de modo que, parafraseando um pensamento de autor anônimo, os amigos brilhem como estrelas no céu de nossa existência.