domingo, 24 de julho de 2011

O Véu de Verônica...


O Véu de Verônica



A sexta estação da Via-sacra nos diz que “Verônica enxuga o rosto de Jesus”. Reza a tradição cristã que, ao simples gesto de compaixão de Verônica, o rosto desfigurado de Cristo ficou estampado sobre o véu que lhe acariciava o semblante sofrido e castigado pelos opróbrios extremos de seu angustiante suplício. Mas que “véu” é esse? Que significado teológico ele poderia ter para o exercício penitencial de nossa conversão? Na verdade, o termo “Verônica” se tornou um nome próprio, cujo significado etimológico é “verdadeiro ícone”. E o “ícone”, como sabemos, tem sua origem numa palavra grega [eikón] que significa “imagem”. Segundo Jacques Maritain, o nome de Verônica poderia ser Berenice, uma piedosa mulher da família de Herodes, que, com outras mulheres, acompanhava Jesus no caminho do Calvário.
O profeta Isaías, numa palavra luminosa e carregada de profundo mistério sobre a vida do “Servo Sofredor”, diz o seguinte: “Era desprezado e abandonado pelos homens, homem sujeito à dor, familiarizado com o sofrimento, como pessoas de quem todos escondem o rosto; desprezado, não fazíamos caso nenhum ele. E, no entanto, eram nossos sofrimentos que ele levava sobre si, nossas dores que ele carregava” (Is 53,3-4). Os sofrimentos de Jesus têm a ver com os pecados de nossa humanidade ferida pelos insultos da desobediência à vontade do Pai. Criados para a felicidade e a intimidade com o projeto de harmonia original estabelecido pelo Criador no paraíso, preferimos nos afastar dele e andar errantes, seguindo nosso próprio caminho, desgarrados como ovelhas sem Pastor. Mas, Jesus aceitou sobre si o preço de nossa reconciliação com Deus. Assim, a imagem de Cristo desfigurado, que aparece no véu de Verônica, é o retrato vivo de nossa maldade, de nossas iniquidades, de nossa desobediência, de nossas traições. Como se expressou Dom Luciano Duarte: “Nós somos o véu de Verônica”. Mas, atravessando a imagem desfigurada desse véu, diante do qual todos nos encontramos, atingimos a plenitude da reconciliação que Deus nos mereceu por meio de Jesus, seu Divino Filho.
Sob a ótica de um tempo novo instaurado por Cristo no altar da cruz, “passaram-se as coisas antigas; eis que se fez realidade nova. Tudo isto vem de Deus que nos reconciliou consigo por Cristo e nos confiou o ministério da reconciliação. Pois era Deus que em Cristo reconciliava o mundo consigo, não imputando aos homens suas faltas e pondo em nós a palavra da reconciliação” (2Cor 5,17-19). Nele, o véu de Verônica se transfigura, transfigurando-nos também no mistério de sua redenção. Porém, essa sublime novidade apresentada por Cristo quer ser para todos nós um apelo fremente de conversão. Somente reconhecendo os nossos pecados, e buscando atualizar a reconciliação com ele, por meio dos Sacramentos da Igreja, é que podemos mitigar e suavizar os sofrimentos que desfiguram, a cada falta nossa, o semblante místico do nosso Salvador. Nessa direção, devemos encaminhar nosso empenho de conversão e mudança de mentalidade e de vida durante o tempo santo da Quaresma.
Vivendo, pois, o esforço concreto de conversão na ascensão espiritual para Deus, perguntemo-nos que lugar nós ocupamos na Via-crúcis de Cristo Jesus. Nela, há lugar para todos. Tem lugar para as mulheres piedosas; para os Cirineus; para as Verônicas; para o bom e o mau ladrão; para Maria, a Mãe de Jesus; para cada um dos Apóstolos, na singularidade de sua resposta ao convite do Mestre e, também, para Judas Iscariotes. Sim, muitas vezes, somos mais traidores do que amigos de Cristo. Todavia, como dissera o Papa Bento XVI, a respeito dos que se enfileiram por entre os inimigos de Cristo e da Igreja, “embora não faltem na Igreja cristãos indignos e traidores, cabe a cada um de nós contrabalançar o mal por eles praticado com o nosso testemunho cristalino a Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador”. E para vivermos tal testemunho, mesmo sabendo que Deus respeita a nossa liberdade humana, devemos, com humildade, reconhecer que nossa generosidade também é fruto de sua graça e de sua misericórdia. Nada deve ser tido como mérito nosso. Pelo contrário, foi Jesus quem nos alcançou quando “Deus o fez pecado” (2Cor 5,21) por causa da nossa salvação.
Superando nossas dificuldades e limitações; vencendo nossos pecados e nossas rebeldias, pequenas ou grandes, estaremos sempre mais identificados com o Cristo glorioso, não mais desfigurado por nossos pecados, mas transfigurado no resplendor de sua Ressurreição, que é, ao mesmo tempo, a garantia eterna de nossa própria Ressurreição. Assim, com esse pensamento de amor, piedade e gratidão a Deus, por nos ter garantido “tão sublime Salvador”, preparemo-nos para viver os dias sagrados da Semana Santa, com o olhar e o coração voltados para o nosso Redentor, Jesus Cristo. E que possam ressoar, silenciosamente, em nosso interior, as palavras de adoração e reconhecimento ao Senhor, quando rezamos os mistérios de sua generosa doação através da via-sacra: “Nós vos adoramos, Santíssimo Senhor Jesus Cristo e vos bendizemos, porque, pela vossa Santa Cruz, remistes o mundo”. Amém.