segunda-feira, 11 de julho de 2011

Feridas do corpo...

Feridas do corpo, Chagas da alma

O mistério da nossa humanidade está bem aí, perto de nós, dentro de nós, mas a mediocridade de nossa insatisfação com a condição de criaturas não nos permite perceber o alcance e a beleza da existência que trazemos no nosso ser. Não precisamos ir muito longe. Quem nunca recebeu um corte no corpo? Uma imprudência distraída ao abrir uma lata de refrigerante, e o sangue abundante escorre da profundidade do talho do instrumento cortante para o susto da vítima ensanguentada. Às vezes, é só o impacto da coloração agressiva, e nada mais. Nem sempre é preciso recorrer ao pronto socorro qualificado porque, aparentemente grave, logo o rubro liquido cessa de escorrer e gotejar. E, então, o que acontece? É necessário esperar o tempo de a cura passar para que as células se estabeleçam e vão reelaborando o tecido ferido. Isso pode durar poucos dias. Todavia, nem sequer nos damos conta do processo de reconstituição do organismo. O fato é que não está sob o nosso controle ou domínio a regeneração mais breve da cicatriz. Quem poderia dizer, por exemplo, ao dedo: “Recupere-se, o mais rapidamente possível!” Ninguém tem esse poder. E percebam que eu estou falando de uma simples cortadela na fímbria da pele. Agora, vamos ampliar o campo de comparação. E se o indivíduo tiver deixado todo o seu corpo atingido por profundas escoriações, imensas chagas, por causa de um inesperado acidente, ou queimadura, ou sabe-se lá o quê, qual seria o tempo de espera para que tudo se refizesse novamente pela sacralidade da natureza das coisas em si mesma? Depois do socorro médico e das orientações de repouso e de cuidados para não piorar a situação, nada poderia precipitar o estado de melhoramento, senão a paciência do lento avanço da recuperação do paciente. A medicina pode ajudar, e ajuda, mas não acelera o processo. Ou seja, a dinâmica mesma da “força ativa que estabeleceu e conserva a ordem natural de tudo quanto existe”, conforme diz Aurélio no seu dicionário, deve ser respeitada. No risco de morte ou de sua ameaça, a melhor alternativa é conservar o estado de ânimo esperançoso de quem foi acometido pelo infortúnio da perturbação da saúde. Em casos mais graves, claro, sabemos que o paciente não volta para casa porque não resiste aos ferimentos... e morre. Os telejornais estão fartos de exemplos desse tipo. Alguém já disse, inclusive, que a vida do homem dura o quanto durarem as suas vísceras. E o diagnóstico procede, mesmo se a contragosto de nossa parte.
As academias estão cheias de pessoas que buscam manter e conservar um corpo saudável, e para isso devem obedecer, rigorosamente, todas às instruções de seu treinador pessoal quando ele existe. E alguns são até muito exigentes. Todo mundo lhes obedece caladinho. Essa é uma boa preocupação com o corpo, e não há nada de mais. O trágico poderia acontecer quando, ao sair da academia, um tropeço por distração, jogue alguém debaixo de um carro. O corpo em forma, morre em forma. Portanto, que fim leva o “cárcere da alma”? A morte, dizem os filósofos, é o abandono radical. Quer dizer, abrimos mãos, também, daquilo que nos torna presentes a esse mundo. O problema é que cuidamos do corpo e descuidamos da alma. Feridas do corpo, chagas da alma! A agitação do mundo moderno e o estresse da busca apenas pelo material levam o homem contemporâneo ao esquecimento do essencial. E o essencial não é decidido pelos caprichos de sua vontade. Se ele não é capaz de apressar a cura de um dedo ferido, como poderia encontrar o remédio interior para as chagas da alma? Pergunta intrigante! Instigante! Quem nasce sem pedir, morre sem querer! Morre contrariado, e ainda se diz senhor de si mesmo. Estranha incongruência, estranha sede de autodomínio! Todas as recusas do homem são reflexos, talvez inconscientes, da insegurança latejante de seus desejos. Assim, somente Deus é o remédio seguro para sua “desorientação ontológica”. O pecado desorientou completamente o homem em suas estruturas mais íntimas. O processo da História da Salvação começa nessa inquietação primária, originária, do descontrole do homem. E até hoje, ou melhor, até o final dos tempos, ele será interpelado pelo “mistério da iniquidade” em face do “mistério da graça”, que exigirá dele a disposição para uma escolha que seja definitiva. E não se trata somente da visibilidade dialética do bem e do mal ou de duas forças antagônicas com apelação maniqueísta, mas de uma decisão fundamental, a fim de que ele não se perca para sempre nos limites inapeláveis de sua constante hesitação.
O fato é que somos interpelados a viver uma vida conforme muitos ditames sociais, culturais, políticos, econômicos, e nos esquecemos da sublimidade da religião porque pensamos a religião à moda de nossa consciência, de nossa disponibilidade temporal para os compromissos de nossa fé. Ou seja, tentamos viver a fé segundo as conveniências de nossos caprichos egoisticamente contrários ao sentido puro e edificante de quem realmente crê que a vida não acaba aqui, envolvida pelo pó da terra, na bruma indissolvível das irrecorríveis incongruências do existir no mundo e no tempo. Na verdade, a mediocridade de nossa autossuficiência acaba na morte, que nos abre à dependência radical diante do que realmente ser-nos-á essencial para a existência despojada da materialidade corruptível do corpo. Com efeito, o dilema da morte coloca em estado de perturbação qualquer tipo de racionalidade, por mais positiva que seja. Portanto, nessa realidade transcendental, encontrar-nos-emos somente no horizonte da ressurreição de Cristo, que nos garante a sobrevivência que se esconde por trás de todas as vicissitudes da matéria e da cronologia que se esgota no fim último das coisas passageiras da terra, entre as quais nos encontramos imersos até à libertação definitiva.
No fundo, qual seria a síntese conclusiva do que estamos tentando dizer? Nenhuma fibra da existência de nosso ser está à mercê de nosso autodomínio. Não podemos curar o corpo por vontade própria. Igualmente, não podemos curar, enquanto sinônimo de salvar, a alma por conta própria. Portanto, nosso retorno à intimidade com Deus é fruto do sacrifício redentor de Cristo que nos comprou. Não nos salvamos por nós mesmos. Diante dessa realidade emblemática, não temos para onde fugir: ou nos entregamos, livres e serenos, Àquele que é o Senhor e Salvador de todos, ou nos perderemos, definitivamente, depois de vencidas todas as possibilidades insuficientes e frustradas do autorresgate.