sexta-feira, 1 de julho de 2011

Mysterium Revelationis Trinitatis

Mysterium Revelationis Trinitatis

O mistério da revelação da Santíssima Trindade [mysterium revelationis trinitatis] chegou à sua plenitude quando Deus mesmo assim se nos revelou através dos séculos: Pai, Filho e Espírito Santo, isto é, três Pessoas em um só Deus. De fato, a verdade teológica que aprendemos na catequese da Igreja não é fruto de nenhuma invenção humana. O homem não poderia, jamais, inventar ou criar Deus como se Ele fosse a absurda alternativa para a explicação do inexplicável. Portanto, a nossa fé caminha pelo filete tênue da revelação divina, porquanto por mais que nos esforcemos para tingir a plenitude de Deus, segundo nossas pobres categorias humanas, permaneceremos sempre aquém do esplendor de sua verdade total.
O próprio termo “mistério” coloca-nos dentro de uma zona de incompreensão que não nos permite esgotar o suposto conhecimento que temos de Deus, mesmo por que tudo o que podemos saber a seu respeito, Ele mesmo no-lo deu a conhecer. Destarte, Ele continua sendo “o Bendito e único Soberano, o Reis dos reis e Senhor dos senhores, o único que possui a imortalidade, que habita uma luz inacessível, que nenhum homem viu, nem pode ver” (1Tm 6,16). Somente à luz da fé podemos aproximar-nos de sua verdade trinitária, conforme a revelação bíblica no-Lo apresenta. Logo no início da Sagrada Escritura, encontramos que “Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1), isto é, tudo o que existe. Aparentemente simples, a primeira expressão da Bíblia, manifesta-nos a potência criativa do único Senhor de tudo e de todos. A ciência moderna poderá percorrer os caminhos que quiser, e tentar provar pela lógica matemática dos cálculos quânticos a origem do universo, mas, desde quando o céu é céu, a terra é terra, o sol é sol e a lua é lua, com todas as infinitas possibilidades de expansão do cosmos, todos permanecem fixos pela harmonia do poder de Deus, que aí os colocou e os conserva até que chegue o momento de “passarem o céu e a terra” (Mt 24,35).
É verdade que a Bíblia não é um livro de ciência como a entendemos hoje, com tantos recursos técnicos de probabilidades exatas para provar algo. No entanto, ela indica o caminho humilde percorrido por Deus em sua pedagogia de autorrevelação. Como escreveu Dom Estevão Bettencourt: “A fé aceita de antemão, a possibilidade de não compreender imediatamente o significado das páginas sagradas, assim como a de se defrontar com os mistérios da Sabedoria de Deus, mistérios que desnorteiam, ora por propor a Transcendência do Altíssimo, ora por narrar a condescendência do Mesmo com a pequenez do homem...”
Em clarões rápidos e progressivos de uma breve retrospectiva histórica, vislumbramos o instante mais próximo de sua teofania, no sentido da vontade da constituição de um povo, na figura de Abraão, que vivia no meio de sua gente, cultuando seus deuses, totalmente mergulhado numa cultura politeísta. Ele não conhecia o futuro Deus de Israel. Ele saíra de Ur dos Caldeus com seu pai Taré, na direção da terra de Canaã, embora tivessem se estabelecido em Harã (Gn 11,27-31). Depois da morte de seu Pai, na terra de Harã, Deus o chamou, dizendo: “Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que te mostrarei. Eu farei de ti um grande povo, e te abençoarei, engrandecerei teu nome; sê uma bênção!” (Gn 12,1-2). Assim, a história dos patriarcas começa com Abraão, e o fio condutor dos acontecimentos vai tecendo a magistral teia dos ideais divinos diante de seu povo.
Mais tarde, Ele aparece a Moisés, o grande legislador, que será enviado por Deus para libertar o seu povo da escravidão no Egito (Ex 2-15). Tendo realizado muitos sinais e prodígios diante do Faraó, finalmente, chega o momento da saída do Egito. Sob sua liderança, o povo de Israel faz a dura experiência do deserto, entre conjunturas desesperadoras de aborrecimentos e reclamações contra Moisés e contra o Senhor, mas, também, de consolações divinas por meio do maná e das codornizes do céu (Ex 16) e da água que o Senhor fez brotar da rocha (Ex 17). Não obstante infidelidades e idolatrias do povo de dura cerviz, o coração de Deus nunca se cansou de amar e dispor ao seu povo, providentemente, os bens necessários à sobrevivência. Tendo chegado ao Sinai, Deus faz aliança com o seu povo e apresenta-lhe o Decálogo, isto é, normas de conduta espiritual que deveriam ajudar o povo a caminhar com perfeição na direção de seu Deus. A voz de Deus dirigida a Moisés e ao povo denota o carinho com que sempre cuidou do se povo: “Vós mesmos vistes o que eu fiz aos egípcios, e como vos carreguei com asas de águia e vos trouxe a mim. Agora, se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis para mim uma prosperidade peculiar entre todos os povos, porque toda a terra é minha. Vós sereis para mim um povo de sacerdotes, uma nação santa” (Ex 19,4-6).
Tempos depois, na encruzilhada da história de Israel, apareceram os profetas, portadores da vontade de Deus para a fidelidade e a santificação de seu povo. Os profetas suscitados por Deus são homens incisivos, determinados e intransigentes em fazer valer as palavras que encerram os mandamentos divinos: manifestam anúncios de possibilidades de castigo e salvação; momentos de ruínas e ameaças de destruição – tudo fruto do pecado e da rebeldia e infidelidade do povo –, e ainda vaticinam conjunturas de esperança e consolação, socorro e auxílios divinos, embalados pelo turbilhão insofrido da iminente chegada do “Dia de Iahweh” – um dia de vingança e ira, em que os bons serão recompensados e, os maus, castigados. Assim, o profeta é o homem do momento inoportuno de Deus. Sua palavra, embora de inspiração divina, é projetada no redemoinho do tempo, agitado pelas páginas dos eventos históricos. Todavia, a marcha lenta dos acontecimentos enfrenta a resistência inconsciente de pessoas e fatos, que, somente com o esforço insistente da revelação divina, são capazes de abrirem-se e aceitar a força iluminadora de sua teofania. Destarte, a dormência ou letargia espiritual de Israel – o povo eleito – vai despertando para o distanciamento da idolatria influenciada pelos povos vizinhos, dentro dos quais ele emerge como sinal da autêntica autorrevelação divina. Com efeito, toda a história de Israel aponta para a chegada do Messias, na “plenitude dos tempos” (Gl 4,4). Então, ele tornar-se-á o ponto de convergência de todos os acontecimentos do Antigo Testamento, totalmente prenhe da esperança dos tempos messiânicos, conforme anunciado pela descendência de Davi (2Sm 7). Esse Messias é Jesus Cristo, o Filho de Deus, a segunda Pessoa da Santíssima Trindade.
Ele nasceu da Virgem Maria, por obra e graça do Espírito Santo (Lc 1,35). Sua verdadeira identidade de Filho de Deus foi revelada aos Apóstolos pelo Pai: “Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi carne ou sangue [nada de humano] que te revelaram isso, e sim o meu Pai que está nos céus” (Mt 16,17). Esse Jesus, o Filho de Deus, antes de afastar-se do mundo anunciou que não deixaria a Comunidade dos Apóstolos órfã, mas enviaria da parte do Pai o Espírito Santo consolador (Jo 14,18), enfim, a terceira Pessoa da Santíssima Trindade. É o Espírito Santo quem autentica toda a verdade proclamada por Jesus Cristo: “Mas o Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que vos disse” (Jo 14,26). Eis, pois, sinteticamente apresentado ao meu querido leitor – que não se cansa da prolixidade de minha exposição, porquanto alguns reclamam que eu escrevo demais – aquilo que o próprio Deus dignou-se revelar-nos de Si mesmo na humilhação de sua proximidade à nossa humanidade pecadora.
Peço-lhe apenas mais um pouco de paciência e perseverança!!! A despeito de tudo o que foi dito, o mistério de Deus não cabe dentro do tempo nem de nossos esquemas humanos. Na verdade, o Transcendente por excelência ultrapassa todos os limites mesquinhos dos raciocínios tacanhos de nossa imanência. Conta-se que Santo Agostinho (século IV: 354-430) andava muito angustiado e preocupado por não entender bem o falado mistério da Santíssima Trindade. Como poderia ser um Deus em três pessoas? Então, certo dia, passeando pela praia, ele encontrou um garoto que enchia um balde com a água do oceano e transportava para dentro de um buraco na areia da praia. Vendo aquela criança que ia e voltava com sua atividade cansativa, ele resolveu perguntar o que ele estava fazendo. Diante da curiosidade, o menino respondeu que estava querendo colocar toda a água do oceano dentro daquele buraco. O Santo, considerando-o engraçado, argumentou: “Será que você não percebe que toda essa água do mar não vai caber nesse pequeno buraco?”. Ao que o menino respondeu-lhe: “Pois eu lhe garanto que é mais fácil eu pôr toda a água do oceano dentro desse buraco do que você conseguir colocar o mistério de Deus, Uno e Trino, dentro de sua cabeça tão pequena”!. Tranquilizado, o Santo entendeu que não iria desvendar a riqueza de tão grande mistério; entendeu que bastava acreditar e aceitá-lo como quem se joga dentro da escuridão da fé, sem desafiar a exatidão paradoxal de suas certezas. Ele, que escreveu todo um Tratado volumoso sobre a Trindade [De Trinitate]!. Imaginem?!. Na introdução da obra, há um pensamento digno de nota: “A obra estampa o retrato do homem pertinaz em suas investigações, mestre do bem escrever, fiel à Revelação e à Tradição, exímio escafandrista nas águas dos textos escriturísticos, esgrimista versátil nas refutações dos erros. Revelando-se, porém, não apenas como tratadista de Deus, mas também alma de profunda piedade e de ardente caridade, as dissertações estão salpicadas de reflexões piedosas, de veementes protestos de fidelidade à ortodoxia católica, de amorosos, embora enérgicos, incentivos ao abandono do erro, aos que persistem em suas opiniões demolidoras da unidade do mistério trinitário”.
Que Santo Agostinho inspire-nos a mesma abertura à Revelação divina de que sua alma, piedosa e santa, estava humildemente dotada.