domingo, 31 de julho de 2011

Verbum Reconciliationis

Verbum Reconciliationis



Às vezes, algumas mentes preguiçosas acusam-me de escrever difícil. É verdade que, dependendo do assunto, e eu geralmente escrevo sobre teologia, nem sempre o conteúdo se demonstra de fácil compreensão. Quanto a isso, eu dou a mão à palmatória. No entanto, eu não poderia deixar de escrever no estilo e na atmosfera literária que, paulatinamente, fui elaborando com base em minhas leituras. De modo consequente, tento transmitir ao leitor aquilo que está ao nível de como consigo e permito-me expressar. Sendo a leitura um veículo de comunicação favorável ao conhecimento, não podemos dispensar-nos aos condicionamentos que emolduram o peculiar modo de percepção das verdades transmitidas no bojo da dialética. Não obstante a consideração apenas feita, brinco dizendo que para testar a capacidade de elucidação de meus textos, apresento-os a uma senhora da roça no interior de Carira, a fim de ver se, numa leitura imediata, e, portanto, sem muito tempo de reflexão, ela consegue dizer-me com suas próprias palavras, pelo menos, o núcleo expositivo do que acabara de ler. E ela, na simplicidade de sua colocação, sempre tem uma palavra compreensível e significativa quanto ao conteúdo do texto. Conclusão: seguirei o caminho na concepção enfática pela qual estabeleço com meus queridos leitores o singelo esforço de comunicação. Então, coragem!. Vamos lá, mais uma vez! Que a luminosidade do pensamento paulino ajude-nos a transpor os umbrais e as sombras das letras de sua teologia, projetando-nos na convicção de sua doutrina cristológica.
No coração da pregação de São Paulo, fruto de sua própria experiência pessoal com Cristo pela inundação espiritual de graças recebidas, está o fato de que Deus reconciliou o mundo consigo pela entrega generosa de seu divino Filho: “Tudo isso vem de Deus que nos reconciliou por Cristo e nos confiou o ministério da reconciliação. Pois era Deus que em Cristo reconciliava o mundo consigo, não imputando aos homens suas faltas e pondo em nós a palavra da reconciliação [verbum reconciliationis]. Sendo assim, em nome de Cristo exercemos a função de embaixadores e por nosso intermédio é Deus mesmo que vos exorta. Em nome de Cristo, suplicamos: deixai-vos reconciliar com Deus. Aquele que não conhecera o pecado, Deus o fez pecado por causa de nós, a fim de que, por ele, nos tornemos justiça de Deus” (2Cor 5,18-19).
Falar de “reconciliação”, sobretudo, quando o nosso coração está cheio de ressentimentos, não é tarefa fácil. Mas, temos de fazer o esforço, de modo especial, pensando no peso da atitude concreta que desfaz os laços da perversidade dos sentimentos mesquinhos que carregamos em nossas ações. Essa seria a primeira e legítima dimensão do que poderíamos entender por “reconciliação”. Porém, não se trata apenas do “ato ou efeito de reconciliar-se” como quando alguém “reata uma amizade”. Mais do que isso – embora haja uma coincidência de vocabulário – o significado teológico e cristocêntrico a que São Paulo se refere sobre o tema da “reconciliação”, vai além do aparentemente perceptível. Infelizmente, a pobreza de nossa terminologia nem sempre abre as janelas do conhecimento para o valor extenso do alcance do seu conteúdo, pois dentro do horizonte paulino no que concerne ao tema da “reconciliação”, está presente todo o mistério da salvação encerrado na Encarnação de Cristo. Somente ele pode reconciliar-nos com Deus, o seu Pai, o Pai de todos nós. Através dessa reconciliação, graça e paz são-nos concedidas abundantemente. A passos largos, Deus mesmo prepara a humanidade para receber o toque definitivo de seu amor reconciliador. Cristo é a manifestação plena desse amor, aos olhos humanos, desconcertante. Assim, “Deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando éramos ainda pecadores” (Rm 5,8). Com efeito, se o afastamento de Deus pelo pecado da desobediência quebrou a imagem do homem na sua essência divina e espiritual, Cristo veio justamente para refazer as rachaduras dessa imagem, ligando-as pela perfeição de sua humanidade. Sendo “verdadeiro Deus e verdadeiro homem”, ele resgata a integridade originária pelo dom de sua graça divina estendida sobre a natureza humana.
No Antigo Testamento, a noção de reconciliação passa pela interpretação não tanto vaga do sentido de “resgate” (do hebraico: kōper), que nos leva a “entender melhor o significado de kāpar. Significa ‘expiar mediante o oferecimento de um substituto’. A grande maioria dos usos diz respeito ao ritual realizado pelos sacerdotes de aspergir o sangue sacrifical, assim ‘fazendo expiação’ pelo adorador. Existem 49 casos de tal uso apenas em Levítico, e nesse livro não há confirmação do uso da palavra com qualquer outro sentido. O verbo é sempre empregado com relação à remoção do pecado ou da contaminação [...]. Parece claro que esse vocábulo ilustra com grande propriedade a teologia da reconciliação do Antigo Testamento. Requeria-se a vida do animal sacrificado, simbolizada especificamente pelo seu sangue, em troca da vida do adorador. O sacrifício de animais na teologia do AT não era mera expressão de gratidão à divindade por parte de um povo criador de gado. Era a expressão simbólica da vida inocente dada em lugar da vida culpada”. Embora numa dimensão bem antiga e remota, o AT intuía a plenitude do resgate que Deus preparava para o povo da nova e eterna aliança, porquanto a situação de Cristo oferecido como vítima inocente no lugar de todos os homens pecadores, deixa claro o que o sentido do sacrifício vicário anunciava, isto é, como ele assumiria em sua pessoa, qual cordeiro imaculado e sem mancha alguma, a culpa de outros. O justo pelos injustos, o inocente pelos culpados. No entanto, não podemos cair naquela de que, se Cristo já nos reconciliou com Deus pelo sacrifício de sua cruz, não precisamos fazer mais nada para levar a termo, em cada um de nós, a riqueza de sua graça definitiva.
Não por acaso, diante do laxismo moral das consciências presunçosas, São Paulo insiste na declaração parenética, exortativa, de seu discurso: “Reconciliai-vos com Deus” (2Cor 5,20). Portanto, “contra os seguidores entusiásticos que acreditavam que seu batismo trazia a salvação toda aqui e agora e contra os mestres intrusos que consideravam a moralidade irrelevante depois do espírito ter sido salvo, Paulo contestou o ‘dispositivo escatológico’, o ‘ainda não’ da reconciliação que, ao contrário da justificação, ainda continua e precisa ser renovado permanentemente. Daí o chamado aos cristãos de Corinto: ‘Deixai-vos reconciliar com Deus’ (2Cor 5,20), para não deixarem sem efeito a graça recebida de Deus (2Cor 6,1) e não deixarem de perceber o perdão que ele oferecia (2Cor 5,5-11; 6,11-13) [...]. Deus realizou uma reconciliação definitiva do mundo, mas os homens e as mulheres precisam aprender a viver com sensibilidade e vigilância a moral até o fim”. Ou seja, que não estamos dispensados de colaborar com a graça, como diria Santo Agostinho: “Quem te criou sem ti, não te salva sem ti”. De fato, é preciso o assentimento de nossa inteligência e vontade ao querer divino da salvação.
Essa dimensão da teologia da “reconciliação” podemos inferir também do próprio vocabulário grego “katallagē”, que, no NT, ocorre somente quatro vezes em São Paulo (Rm 5,11; 11,15; 2Cor 5,18.19). Segundo Fr. Büchsel, trata-se do novo relacionamento que Deus instaurou com o homem através de seu divino Filho, Jesus Cristo. Assim, a pregação e a atividade apostólica são entendidas como uma “mensagem”, apresentada pelo “mistério [ministério, diaconia, serviço, conforme o original grego] da reconciliação” (2Cor 5,18.19). Na verdade, o apóstolo traz aos homens o anúncio de que Deus quer reconduzi-los a si; aqueles que acolhem o convite e se abrem à vontade divina, recebem, de fato, a reconciliação (Rm 5,11). No fundo, a teologia de São Paulo vem dizer-nos que não somos salvadores de nós mesmos. Deus enviou o seu Filho para ser o nosso salvador bendito, e fora dele não há salvação possível. Em outras palavras, ninguém tem autoridade sobre si mesmo para decidir como quer ser salvo. O caminho é um só, e passa por uma única e exclusiva pessoa: Jesus Cristo. E não adianta tentar buscar nem encontrar subterfúgios racionais na lógica humana para camuflar a objetividade desse anúncio, cuja verdade não está condicionada ao livre arbítrio de nossa decisão. Ou passamos por ele, isto é, por Cristo, “Caminho, Verdade e Vida (Jo 14,6) ou não encontraremos, jamais, a salvação verdadeira.